30 de dezembro de 2004

Está explicado

Doctor Unheimlich has diagnosed me with
Graça's Disorder
Cause:unknown
Symptoms:turning to stone, aphasia, automatic writing, seizures
Cure:click heels together three times
Enter your name, for your own diagnosis:

29 de dezembro de 2004


Maria Azenha (1945)

O prazo de validade da escola

o prazo de validade da Escola
está fora do Um
entrego-me nas horas a polir as unhas ao Todo

o buraco da fechadura do mundo
está sujo

as empregadas
fecham as portas e marcam faltas
no supermercado onde vivo

escrevo no quadro está calada vânia
sem a metafísica do sujeito além do mais
o teorema de pitágoras foi de certeza roubado
da internet para testar a professora do armazém

deviam todos vestir a mesma bata para não se distinguir
a bélgica da alemanha da espanha e por aí fora
e também o país às terças feiras
quando toda a gente vai fazer compras
ao armazém de george orwell

as refeições continuam a ser repressivas
ninguém sabe o que come "está bem"
mas ficámos uns com os outros por causa da noção do todo

Maria Azenha

.

26 de dezembro de 2004


Alberto Pimenta (1937)


este dia há-de passar este dia há-de passar e a noite
também a noite também há-de passar e depois há-de pas
sar o dia de amanhã o dia de amanhã e a noite de aman
hã e depois passará o dia de depois de amanhã passará
o dia e a noite de depois de amanhã e seguidamente pa
ssará também o dia seguinte e passará a noite respec
tiva e o outro dia seguinte e a outra noite e o outro
dia e a noite e o dia a seguir e todos e todas hão-de
passar todas e todos todos os dias e todas as noites
com as lembranças uns dos outros com as tristes e com
as alegres lembranças uns dos outros umas das outras
uns dias dos outros dias umas noites das outras noites
com as alegres e as tristes lembranças das lembranças
todas e todos hão-de passar assim também o dia que há
de vir a seguir àqueles dias e a noite que virá segui
damente oh sim assim será assim será e aqui não acaba
não acaba aqui a minha visão mas não me apetece mais
pois embora assim seja eu sei que tudo será diferente

Alberto Pimenta,
Obra quase Incompleta


19 de dezembro de 2004


Alexandre O'Neill (1924-1986)


Soneto Inglês

Como o silêncio do punhal num peito,
O silêncio do sangue a converter
Em fio breve o coração desfeito
Que nas pedras acaba de morrer,

Vive em mim o teu nome, tão perfeito
Que mais ninguém o pode conhecer!
É a morte que vivo e não aceito;
É a vida que espero não perder.

Viver a vida e não viver a morte;
Procurar noutros olhos a medida,
Vencer o tempo, dominar a sorte,

Atraiçoar a morte com a vida!
Depois morrer de coração aberto
E no sangue o teu nome já liberto...

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

.

18 de dezembro de 2004

É nos actos, nos actos, frente a frente,
que os homens se conhecem
e raro nas verdades que mastigam
e divulgam no fumo das palavras.

Todavia, as palavras são os actos
mais puros dos poetas: carne viva,
sal pessoal de lágrimas ardidas
num colectivo mar que se evapora.
São também o tempero cristalino
da nascente futura, entre montanhas
Pardas.

Não me perguntes, pois, que fiz ou faço
ou quanto irei fazer (pouco, decerto,
mal cabendo num verso tão volátil!).

Mas olha-me nos olhos, firmemente,
e diz-me se te vês.

Que todo o verso é hálito comum
correndo em veias cósmicas. Poeira.
Parabólico voo. Estreita nave.
Celeste agricultura.
- De palavras.

António Luís Moita (1928)
.

9 de dezembro de 2004


José Rodrigues Miguéis (1901-1980)

“Venha até lá casa no Dia de Natal”, tinha-me dito aquele compatriota. ”Passa-se um bom rato. Temos polvo guisado à portuguesa, e um arroz de amêijoas que o prepara Don Rufas. Vai ver que não se arrepende. Aquilo o que tem é ser casa de pobres...”
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por estas bandas. Como vivem os da Nova Inglaterra já eu sei. Mas por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho e buxo, por vezes uma vela acesa, em mensagem de paz e alegria a quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada 1uz do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risadas, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolariza-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a parte onde fui deixando o coração em pedaços. Quero que ele esteja aqui, todo presente, inteiro e caloroso, e ele foge-me, dispersa-se... Foge para os que amo do outro lado do oceano - minha mãe, amigos meus, amores perdidos - ou para lá do Hudson, no lar dum amigo fiel, onde eu gostaria de ficar hoje a gozar em silêncio a paz do dia samto, cachimbando diante dum bom lume.
Nunca eu sofro tanto, como nestes dias, do absurdo, impossível desejo de ver reunidos comigo todos os seres, tantos deles inconciliáveis, que tenho amado e continuo a amar através de tudo, os vivos e os mortos. O meu coração, insaciável de receber e dar carinhos, alegria e fervor, dilata-se e palpita até me doer o peito . Este amor difuso, fragmentário, polivalente, dilacera-me: tenho de fazer um esforço, sacudir-me, condensar-me, para não ficar de todo triste, e estar aqui presente, em vez de me esvair em fumo de solidão, de renúncia total. Não podendo ter tudo e todos, ser de tudo e todos, prefiro não ter nada, ninguém,e ficar só - para me dar melhor...

José Rodrigues Miguéis, “Natal Branco” (excerto)
.

8 de dezembro de 2004






























Florbela Espanca (1894-1930)



INCONSTÂNCIA

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

Florbela Espanca

.

7 de dezembro de 2004


José Carlos Ary dos Santos (1937-1984)



Os Sapatos
2
Lá vem o teddy-poeta
que não tem nada a dizer
filho-família do mar
que lhe morreu ao nascer
parasita das palavras
que tem no banco a render
e se gastam, como a voz
dum povo que vai morrer.

Lá vem o tédio-poeta
que não tem nada a perder.
Vem numa hora de bruma
depois do café com leite
depois do banho de espuma
que lava o sal e o cheiro
a fingir que se levanta
dum leito de nevoeiro.
Chega de Alcácer Quibir
com escorbuto na alma
e morre, mas devagar,
neste mar-asma de calma.
.
José Carlos Ary dos Santos
.

4 de dezembro de 2004

Lembro-me perfeitamente desse futuro.
Julgo que ele ainda lá está. Como tu. No avesso da vida.
E lembro-me perfeitamente de existir. Como se fosse hoje.
Nunca percebi por que te abandonaste. Por que te negaste tantas vezes.
Julguei que era eu o teu sangue. O teu nome.

Nunca te perdoarei por me teres deixado morrer.
Ou por me obrigares a viver.
Diariamente.
Continuamente exposta à tua claridade.

2 de dezembro de 2004

Para quem suspeitava, a confirmação:

Disorder Rating

Paranoid: Moderate
Schizoid: Moderate
Schizotypal: Low
Antisocial: Low
Borderline: Moderate
Histrionic: Low
Narcissistic: Low
Avoidant: Moderate
Dependent: Moderate
Obsessive-Compulsive: Moderate

URL of the test: http://www.4degreez.com/misc/personality_disorder_test.mvURL for more info: http://www.4degreez.com/misc/disorder_information2.html

1 de dezembro de 2004


Pedro Tamen (1934)


Onde foste ao bater das quatro horas
E, antes, quem eras tu, se eras?
Amigo ou inimigo, posso falar-te agora
Sentado à minha frente e com os ombros
Vergados ao peso da caneta?
Falo-te sobre a cabeça baixa
E vejo para além de ti no horizonte,
Teus riscos e passadas;
Mas não sei onde foste nem se eras.
Olho-te ao fundo, sob o sol e a chuva,
Fazendo gestos largos ou só um leve aceno;
Dizes palavras antigas,
De antes das quatro horas,
E nada sei de ti que tu me digas
Dessa cabeça surda.
Não te pergunto pela verdade,
Que pensas de amanhã ou se já leste Goethe;
Sequer se amaste ou amas
Misteriosamente
Uma mulher, um peixe, uma papoila.
Não quero essa mudez de condolências
A mim, a ti, ou só à terra
Que tu e eu pisamos – e comemos.
Pergunto simplesmente se tu eras,
Quem eras, e onde foste
Depois que se fizeram quatro horas.

Será que não tens olhos? Não tos vejo.
De longe em longe
Agitas a cabeça, mas talvez seja engano.
Palavra que não te entendo.
Amigo, a que vieste?

Pedro Tamen

.

25 de novembro de 2004


Eça de Queirós (1845-1900)

O redactor de um dos mais vivos jornais de Lisboa contava-nos(...), na redacção, que vira na véspera alguns polícias, diante de um homem com um acidente, tratando de lhe fazer voltar os espíritos à força de pontapés na cabeça: o homem rebolava no chão; os polícias então davam-lhe pontapés no estômago. Talvez a Medicina não siga inteiramente este sistema de curar acidentes: no entanto a polícia tem essa opinião terapêutica, e nós não podemos contestar a ninguém o direito de divergir, em questões de ciência , da Escola Médico-Cirúrgica. O acidente tratado pelo espancamento é uma teoria.É boa? É má?...Em todo o caso é respeitável.
Somente nos parece que, visto a polícia possuir este método específico, que ela decerto julga proveitoso, porque o usa, não lhe poderia custar muito um pequeno trabalho a mais – e o Governo deveria encarregá-la de tratar os cidadãos enfermos. Poupávamos assim a despesa com a Escola de Medicina. Quando alguém se sentisse doente, chamava da janela o polícia da esquina; e este benemérito, depois de tomar o pulso e reconhecer a autenticidade do mal, arregaçava a calça, mandava pôr o doente em posição e escalavrava-o a pontapés!
Uma economia paralela nos ocorre a respeito da municipal. Coronhadas como as que vimos estalar, com um som baço e gemente, nas ilhargas de dois cidadãos, podem muito naturalmente matar um homem fraco, que sofra do peito, de uma lesão, de um aneurisma, de um vício de construção. Ora não queremos dizer que a patrulha não tenha a faculdade de matar, à coronhada, os cidadãos que destranquilizem as ruas!
Seria esse mesmo o meio mais eficaz de estabelecer na cidade uma paz inalterável. O cidadão estendido morto, com a espinha partida ou crânio aberto, aos pés do municipal, dá garantias superiores do seu sossego e da sua cordura. É decerto a melhor maneira de fazer entrar um cidadão na ordem - é fazê-lo entrar no cemitério.
Mas então (economia!) suprimamos os tribunais. Recolha-se definitivamente a magistratura ao seio das suas famílias e das suas torradas. Não é necessário que haja juiz para julgar os cidadãos quando a municipal previamente se encarrega de defazer esses cidadãos às coronhadas! O mais subtil magistrado ficaria pálido de embaraço se lhe apresentassem o corpo despedaçado de um desordeiro - para ele lhe fazer perguntas!E como poderia um cadáver pagar a multa? Poupemos à justiça estas colisões vexatórias!


Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (texto com supressões)

24 de novembro de 2004


António Gedeão (1906-1997)


Amostra sem valor

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão

.

23 de novembro de 2004


Herberto Helder (1930)


Fonte

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo ---
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres suavemente.
Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

Herberto Helder

20 de novembro de 2004

Construção

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Chico Buarque

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18 de novembro de 2004


Manuel António Pina (1943)


A vida real

Imperecível, de cristal, é a vida real
António Franco Alexandre

Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exacta,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória.

Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança
.

16 de novembro de 2004


José Saramago (n. 1922)

Discurso contra o Lirismo


Meus senhores:

Tomo a palavra por um dever de consciência e peço toda a vossa atenção, porque vou dizer coisas muito sérias. Penso que chegou a hora de definir posições, de tomar partido por ou contra, para que se extremem os campos e cada um de nós conheça o lugar que ocupa. É imperioso. É urgente. É inadiável. E espero firmemente que saiamos daqui mais seguros das nossas certezas e sabendo, de uma vez por todas, onde estão e quem são os nossos adversários.
Anda por aí, em inesperada revivescência, contrariando e minando os nossos esforços para a objectividade e a frieza, sem as quais nada de útil se pode construir, uma antiga doença que fez muito mal ao mundo em tempos passados. Falo do lirismo. Afirmo que é uma doutrina perniciosa. Perniciosos são os seus propagadores, sujeitos doentíssimos, intoxicados, verdadeiros focos ambulantes de infecção. Chamam-se a si próprios poetas. É também esse o nome que lhes damos, mas, felizmente, nós conseguimos, por um disciplinado trabalho das cordas vocais, ajudado por uma certa expressão do rosto, transformar essa palavra em injúria. Que eles merecem, diga-se de passagem.
Torno a pedir a vossa atenção. Não gosto de vos ver distraídos, só porque o sol está realmente bonito e anda ali um pombo a esvoaçar. Os pombos, tenho-o dito muitas vezes, são mais nocivos do que se julga. Lá fora, isso foi reconhecido. Tomaram-se providências adequadas para salvaguarda dos monumentos e da saúde pública.
Mas volto aos poetas, agora que o contínuo desta sociedade já fechou as janelas. Os poetas deviam ser eliminados, pura e simplesmente. Impõem-se atitudes drásticas, radicais, que não deixem pedra sobre pedra, quer dizer, verso sobre verso. Esta gente distribui papéis onde aparecem certas palavras que deveriam ser riscadas dos dicionários. Direi algumas, embora a minha formação espiritual se revolte contra a violência a que, por dever de objectividade, me obrigo. Amor, esperança, saudade, rosa,mar - eis algumas dessas palavras. Uma pequena amostra de um vocabulário decadente, inoportuno, direi mesmo subversivo.
Como se isto não bastasse, os poetas (notaram a maneira como eu articulei a palavra?) tiram da sua maliciosa actividade uma não sei que insuportável arrogância, um desdém olímpico que nos faz estremecer de indignação.Alguns cobrem-se com uma capa de modéstia e de humildade que, à primeira vista, engana. São os piores. Com o seu ar de mansidão, que, dizem eles, lhes vem de um particular conhecimento do mundo, aliciam alguns dos nossos melhores elementos, pervertem-nos, desviam-nos das tarefas essenciais. Afirmam eles que também sabem alguma coisa de tarefas essenciais. Desconfiai, amigos. Entre nós e eles nada há de comum. O poeta é o nosso inimigo principal. Só quando conseguirmos arrancar esta lepra da face da terra poderemos viver em paz.
Sei que estou sendo escutado com atenção, que cada palavra que profiro reforça a nossa unidade, mas não posso deixar de notar uma certa (como direi?), uma certa flutuação na sala. Não posso compreender a atitude de alguns presentes que seguem com os olhos o fumo dos cigarros. Ou é distracção, ou perversão, ou nenhum respeito pelo conferencista. De qualquer modo, é lamentável.Também não sei que interesse encontram na garrafa da água. Por mim, não vejo nela mais do que uns efeitos de luz, refracções luminosas que qualquer manual de física elementar explica. E declaro que me está a irritar a cantoria dos pássaros (ou serão crianças?) que vem lá de fora. E esse senhor, ao fundo, que foi que lhe deu, para se pôr agora a sorrir? E o senhor, sim, o senhor, por que se levanta e vai abrir as janelas? Para que é este sol? E o verde dessas árvores? E por que não se calam as crianças? Ou serão pássaros?
Meus senhores, sinto-me profundamente desgostoso. A sessão está encerrada. Tenho dito.
.
José Saramago, Deste Mundo e do Outro
.

15 de novembro de 2004


Enquanto ganhas a vida
Eu roubo os dias ao tempo
E sento-me a saborear
O seu gosto imerecido
E um leve aroma de vitória


Deve ser óptimo ser tu
Não ter a agonia de ser
Nem o espanto de não ver
Sentir o que sempre sentiste
Deve ser óptimo ser tu
Adormecer a vida devagar
Sem pressas - que o mundo espera por quem nunca sonha sem razão
Por quem nunca entrega o coração ou a alma aflita aos que a pedem
Deve ser óptimo ser tu
Ter o sabor infinito da piedade pelos outros
O prazer supremo de ver o escuro
E a claridade proibida
Sem medo de estar presente
E sempre ausente de ti
Ter a certeza dos dias previsíveis
Do timbre exacto das horas
Do compasso preciso das palavras
Saber-te de cor
Deve ser óptimo medir a dor
Explicar os versos vazios da noite
Escandir o que nunca foi
Sem encontrar um rasto de mágoa
Decorar o silêncio aos poucos
Seguir sem dúvidas o passo seguro da verdade
O velho mapa do esquecimento
A viagem de dentro de ti
Para ires desvivendo lentamente
Sem nunca aprender a gritar
Sem nunca tocar o solo e tremer
Devias saber que não há resposta para a vida
Só o sim da morte
Mas deixa-te estar à tona dos dias
Sem conhecer o voo submerso
Deixa que o tempo te embale
Sem que oiças a canção da noite
No desengano azul da manhã
Ou sintas a paralisia inquieta
Dos que sabem o caminho de si
O trilho triste da solidão
Deixa-te estar

Em ti
Porque deve ser óptimo ser tu
Sem ouvir a estridência de ti
A melodia vaga que ninguém sabe
Sem expiar dia a dia a culpa de quem se é
Nesse sono perene de ti próprio
Nesse sossego dos que se ouvem ao longe
Deve ser óptimo
Os olhos dos outros trazem a nossa luz
Devolvem-nos
Mas vês bem a sós
O que tomas por ti
Por mim
Desconheces o lume da amargura
O rasgo fundo da derrota
Só a letargia de saberes sempre porquê
A confortável manta da loucura por cumprir
A crepitação suave do ódio doméstico
Na tua lareira interior
Onde nunca te avivaste
Remendando sempre a tempo
A tremura da voz
O tecido barato das lágrimas
A inconveniente ânsia de chamas
Deve ser mesmo óptimo ser tu
O que diz sempre o que pensa que diz
O que nunca mas nunca se encanta com o feitiço alheio
O que espera o que sabe que vai chegar
Deve ser óptimo
Morrer devagar

7 de novembro de 2004


Cecília Meireles (1901-1964)

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles


Serenata

Permite que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

Cecília Meireles

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6 de novembro de 2004


Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

Soneto de Eurydice

Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido


4 de novembro de 2004

Fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.

José Luís Peixoto, A Criança Em Ruínas

2 de novembro de 2004


Jorge de Sena (1919-1978)


No País dos Sacanas

Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice, porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena

.

1 de novembro de 2004


Saúl Dias(1902-1983)


A Última Fala do Palhaço

- Deixem-me ser eu
um instante, ao menos...!
Ainda vale a pena!
Deixem-me vir à cena
em primeiro lugar,
a rir ou a chorar
(a mesma coisa afinal...)!

Deixem-me, antes que morra,
demolir a masmorra
que eu mesmo construí
com lágrimas e sangue
e, embora exangue,
ser só eu, tal e qual!

Saúl Dias

31 de outubro de 2004


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Carlos Drummond de Andrade


http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/index2.htm
http://www.releituras.com/drummond_bio.asp

30 de outubro de 2004


Paul Valéry (1871-1945)



Chaque atome de silence
Est la chance d'un fruit mûr!

Paul Valéry, Poésies


28 de outubro de 2004


Natércia Freire (n.1920)

NÃO

Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.

Natércia Freire,
Antologia Poética


24 de outubro de 2004


Emanuel Félix (1936-2004)



Poema-Pedra para Henry Moore

Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem

Ame o homem a pedra
e pronto

Emanuel Félix

23 de outubro de 2004


Habituei-me a que não falasses comigo
isto é
que falasses com quem me vês
de modo que
inevitavelmente
também deixei de te responder
e vou vogando pelo teu dialecto fácil
pelas palavras
cálidas
polidas
ténues
irónicas
simpáticas
monótonas
leves
divertidas
convencionais
que me estendes
palavras meio-mortas
que te devolvo numa ilusão de conversa
sem que te atrevas
naturalmente
a queimar os dedos nas sílabas de lava do que sentes
e num degelo lento
chegar até ti.

19 de outubro de 2004


Vinicius de Moraes (1913-1980)


Soneto da Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes

17 de outubro de 2004


António Ramos Rosa (n. 1924)


Quem escreve

Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.

António ramos Rosa, Acordes


http://www.geocities.com/Paris/Concorde/1070/antonioramosrosa.html
http://www.instituto-camoes.pt/arquivos/literatura/arqvarrosa.htm

16 de outubro de 2004


Oscar Wilde (1854-1900)

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que consegue traduzir, de outro modo ou em novo material, a sua impressão das coisas belas.
A mais elevada, como a mais medíocre, forma de crítica é uma expressão autobiográfica.
Os que encontram significados disformes em coisas belas, são corruptos sem agradarem, o que é um defeito.
Os que encontram belos significados em coisas belas são os cultos. Para eles há esperança.
São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo.
A antipatia do séc. XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara ao espelho.
A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem é assunto para o artista, mas a moralidade da arte consiste na perfeita utilizaçãode um meio imperfeito.Um artista não quer provar coisa alguma. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.
Um artista não tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.
O artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
Para o artista, o pensamento e a linguagem são instrumentos de uma arte.
Para o artista, o vício e a virtude são matéria de uma arte.
Do ponto de vista formal, o modelo de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista sentimental, o trabalho do actor é o modelo.
Toda arte é simultaneamente, superfície e símbolo.
Os que penetram para lá da superfície, fazem-no a suas próprias expensas.
Os que lêem o símbolo, fazem-no também a suas próprias expensas.
O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.
A diversidade de opinião sobre uma obra de arte revela que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está em consonância consigo próprio.
Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil, desde que não a admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é ser objecto de intensa admiração.

14 de outubro de 2004


e. e. cummings (1894-1962)


um riso sem um
rosto(um olhar
sem um eu) cuida

do(não to
que)ou
desaparec
erá sem ru

ído(na doce
terra)&
ninguém
(inclusive nós

mesmos)
relem
brará
(por uma fra

ção de
um mo
mento)onde
o que como

quando
por que qual
quem
(ou qualquer coisa)

e.e. cummings

10 de outubro de 2004


Harold Pinter (n. 1930)


The Ventriloquists

I send my voice into your mouth
You return the compliment

I am the Count of Cannizzaro
You are Her Royal Highness the Princess Augusta

I am the thaumaturgic chain
You hold the opera glass and cards

You become extemporaneous song
I am your tutor

You are my invisible seed
I am Timour the Tartar

You are my curious trick
I your enchanted caddy

I am your confounding doll
You my confounded dummy.

Harold Pinter


http://www.brainyencyclopedia.com/encyclopedia/h/ha/harold_pinter.html
http://www.haroldpinter.org/home/index.shtml
http://www.kirjasto.sci.fi/hpinter.htm
http://www.contemporarywriters.com/authors/?p=auth01G24K343812605467

9 de outubro de 2004


John Lennon (1940-1980)

Nobody Told Me

Everybody's talking and no one says a word
Everybody's making love and no one really cares
There's Nazis in the bathroom just below the stairs

Always something happening and nothing going on
There's always something cooking and nothing in the pot
They're starving back in China so finish what you got

Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Strange days indeed -- strange days indeed

Everybody's runnin' and no one makes a move
Everyone's a winner and nothing left to lose
There's a little yellow idol to the north of Katmandu

Everybody's flying and no one leaves the ground
Everybody's crying and no one makes a sound
There's a place for us in the movies you just gotta lay around

Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Strange days indeed -- most peculiar, mama

Everybody's smoking and no one's getting high
Everybody's flying and never touch the sky
There's a UFO over New York and I ain't too surprised

Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Strange days indeed -- most peculiar, mama

John Lennon

.

5 de outubro de 2004

UNIÃO DE FACTO
A verdade é que vivemos felizes, totalmente felizes, garanto-te. As nossas palavras desencontram-se algumas vezes, mas comunicamos, ao contrário de muitas pessoas. E estou convencida de que nos amamos. Muito, como costumas sublinhar. Usas outras palavras, vestes outras ideias. Sorris menos. Já não tomas café no velho Central. Ouves jazz, que detestavas. Enfim, sinto que te moldaste com esmero e que tens orgulho na pessoa que criaste. E eu própria procuro ser um pouco de ti, sou um pouco de ti, como sabes, como me repetes. Não percebo por que, de repente, este desejo de asas, esta vontade súbita de não me/te sentir, de não me/te ser. De não querer caber no barro dos teus passos. De me seguir. É absurdo, bem sei. E logo agora, que somos tão próximos, com tanto em comum, com uma vida comum, é que me deu para... Já reparaste como somos parecidos? As mesmas expressões, os mesmos tiques, os mesmos sonhos... E o respeito que nos une, ao contrário de muitos. A harmonia, a comunhão de interesses... Uma união, de facto. É quase ridículo, portanto, que não me apeteça viver-te, quando me fartei de jurar que eras a minha vida. E foste. E és. É quase ridículo que me apeteça sair de ti, de um abrigo morno onde sou feliz. Esta ânsia de dor, de facto, não se explica. Felizmente que és, como todos dizem, extremamente compreensivo, e medirás logo, com um simples olhar, com um sorriso complacente, toda esta angústia, a esquadria completa da minha alma. E as asas ganharão, lentamente, a forma de braços. E apontarás um norte tão óbvio, em que não reparara. Porque já me conheces, sabes que tenho fases. Amanhã, já me deixei de voos - e fico em terra, perfeitamente convencida de que me sou contigo.
.

3 de outubro de 2004


Thomas Wolfe (1900-1938)

"A destiny that leads the English to the Dutch is strange enough; but one that leads from Epsom into Pennsylvania, and thence into the hills that shut in Altamont over the proud coral cry of the cock, and the soft stone smile of an angel, is touched by that dark miracle of chance which makes new magic in a dusty world.
Each of us is all the sums he has not counted: subtract us into nakedness and night again, and you shall see begin in Crete four thousand years ago the love that ended yesterday in Texas.
The seed of our destruction will blossom in the desert, the alexin of our cure grows by a mountain rock, and our lives are haunted by a Georgia slattern, because a London cutpurse went unhung. Each moment is the fruit of forty thousand years. The minute-winning days, like flies, buzz home to death, and every moment is a window on all time."

Thomas Wolfe, Look Homeward, Angel

2 de outubro de 2004


Graham Greene (19o4-1991)

17 de Junho de 1944
(...)
Se eu voltasse para trás, onde estaríamos? Onde estávamos há um ano. Furiosos um com o outro por tementes do fim, preocupados com o que fazer da vida quando nada mais nos restasse. Não preciso preocupar-me – nada há já que temer. Isto é o fim. Mas, meu Deus, que farei deste desejo de amar?
Porque escrevo “meu Deus”? – se para mim ele não existe. Se existe, foi ele que me incutiu a ideia da promessa e detesto-o porque o fez. (...)
Não prestámos atenção às sereias. Não tinham importância. Não temíamos morrer assim. Mas o ataque nunca mais acabava.(...) Maurice desceu a escada para ver se na cave estava alguém – tinha medo por mim, como eu tinha por ele. Eu sabia que ia acontecer alguma coisa.
Não havia dois minutos que ele saíra, rebentou uma bomba na rua. (...)Fui pela escada abaixo: estava cheia de destroços e corrimões partidos, e o vestíbulo era só confusão terrível. Primeiro não vi Maurice, e só depois vi o braço que saía de debaixo da porta. Toquei-lhe na mão: seria capaz de jurar que era uma mão morta. Quando duas pessoas se amaram não podem disfarçar a falta de ternura num beijo; como poderia eu ao tocar-lhe na mão, não ter reconhecido a vida, se alguma houvesse ainda?(...) Claro que agora sei que tudo foi nervosismo. Fui enganada. Ele não estava morto. É-se responsável por uma promessa histérica? A que promessa se falta? (...)
Ajoelhei no chão: sentia-me desesperada por ajoelhar, nem mesmo em criança o fizera – porque meus pais não acreditavam em orações, como eu não acredito. Não sabia o que havia de dizer. Maurice estava morto. Extinguira-se. (...) Meu Deus, dizia eu- e meu, meu porquê -, faz com que eu acredite. Não posso acreditar, não sei. Faz com que eu acredite. E dizia: sou uma prostituta, uma impostora, desprezo-me. Não tenho força de vontade. Faz-me acreditar. Apertei muitos os olhos, fechei as mãos com muita força, até não sentir senão as unhas magoando-me, e disse que queria acreditar. Dá-lhe vida, e acreditarei. Dá-lhe uma última oportunidade. Deixa-o ser feliz. Faz isto, e eu acredito. Mas não bastava. Acreditar não dói. E por isso acrescentei: eu amo-o, e dou-Te o que quiseres em troca da sua vida. E muito baixinho disse: deixá-lo-ei para sempre, se o deixares viver, e enterrava mais e mais as unhas até sentir a pele romper-se. E continuei: as pessoas podem amar-se sem se ver, amam-Te sem Te ver a vida inteira - e ele apareceu à porta e estava vivo, e eu pensei: a agonia de viver sem ele começa, e desejei-o outra vez definitivamente morto, debaixo da porta.

Graham Greene, O Fim da Aventura

1 de outubro de 2004

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquesta? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

Camilo Pessanha

Porque hoje é o Dia Mundial da Música

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29 de setembro de 2004


Miguel de Unamuno(1864-1931)
(retrato de Ramón Casas)

(…)
«Esperar o amor! Só o espera quem o tem já dentro de si! Cremos cingir a sua sombra, quando ele, o amor, invisível aos nossos olhos, nos estreita e nos oprime. Quando julgamos que morreu em nós, é porque já tínhamos morrido dentro dele, pois só se ama deveras depois que o coração do amante se misturou, em almofariz de angústia, com o coração do ente amado. E o amor - paixão - partilhada, é paixão, dor comum. Dele vivemos, sem dele darmos conta, como não nos damos conta de vivermos do ar, até ao momento de asfixia angustiosa. Esperar o amor! Só espera o amor, só por ele chama, aquele que o possui já em si, o que do seu sangue vive, mesmo sem saber.

É a água subterrânea a que aviva a secura. Sentimos, por vezes, uma sede abrasadora, tal qual a do campo deserto que se abre em sulcos de secura, ao passo que voam à solta, à superfície, as folhas levadas pelo vento suão; e, todavia, nas profundezas desse mesmo campo, sob as várzeas de sua verdura morta, corre, sobre a Tocha que a sustém, o caudal da água vivificadora. E é o rumor dessa água profunda o que se funde ao ruído das folhas secas, e vem numa altura em que a terra ressequida se escancara - e, à superfície dela, irrompem, como manancial, as águas adormecidas. Assim é o Amor».

«É o egotismo, porém, minhas irmãs e meus irmãos, é o triste e orgulhoso amor-próprio que nos cega, a fim de não enxergarmos o amor que nos cinge e envolve, para não o sentir. Queremos tirar-lhe algo, não nos entregarmos de todo a ele - e o amor deseja-nos e reclama-nos inteiros. Queremos que ele seja nosso, que se submeta aos nossos insensatos desejos, na busca do nosso esplendor pessoal e Ele, o Amor, o Amor incarnado e humanizado, exige que a ele pertençamos, inteiramente - e só a ele. E quando nos submetemos?"

Miguel de Unamuno, "Uma História de Amor"

28 de setembro de 2004

Se soubesse que a vida traz o vento da raiva contida,
a luz das madrugadas sem sol,
ou que o inferno arde na morte lenta dos dias sem horas,
se soubesse que música se ouve nas lembranças do que nunca aconteceu,
na tarde que arrefece devagar, sem sabermos,
teria tentado ouvir as frases em branco,
a melodia de inverno dos olhos que não brilham,
teria embarcado nos abraços sem corpo de tantas palavras.
COMPREENDER A MORTE
Contei a Morrie que já me sentia na fase mais descendente da vida, por muito desesperadamente que tentasse sentir-me ao de cima. (...)
Morrie via o envelhecimento numa perspectiva melhor.
- Toda esta ênfase na juventude não me convence –disse ele. –Escuta, eu sei a infelicidade que um jovem pode sentir, portanto não me digas que é assim tão bom. Todos estes miúdos que vêm até mim com as suas lutas, os seus conflitos, os seus sentimentos de desadaptação, o seu sentido de que a vida é miserável, tão má que se querem suicidar... (...)
Nunca tiveste medo de envelhecer, perguntei eu?
-Mitch, eu abraço o envelhecer.
Abraças?
- É muito simples. À medida que cresces, aprendes mais. Se ficasses pelos vinte e dois anos, serias sempre tão ignorante como eras aos vinte e dois anos. Sabes, envelhecer não é só decadência. É crescimento. É mais do que o negativo do que vais morrer, é também o positivo de que vais compreender que vais morrer, e que vives uma vida melhor por causa disso.
Sim, mas se envelhecer é tão valioso, porque é que as pessoas dizem sempre “Ah, se fosse novo outra vez”. Nunca ouves ninguém dizer “Gostava de ter sessenta e cinco anos”.
Sorriu.
- Sabes o que isso reflecte? Vidas insatisfeitas. Vidas incompletas. Vidas que não encontraram sentido. Porque se encontrares sentido na vida, não desejas voltar atrás. Queres ir para a frente. Queres ver mais, fazer mais. Estás mortinho por chegar aos sessenta e cinco.
“Ouve, tens de saber uma coisa. Todos os jovens têm de saber uma coisa. Se estiveres sempre a batalhar contra o envelhecimento, vais ser sempre infeliz, porque isso vai acontecer de qualquer maneira.
“E, Mitch?”
Baixou a voz..
- O facto é que vais mesmo acabar por morrer.

Mitch Albom, As Terças com Morrie (excerto)

26 de setembro de 2004


Luís FernandoVeríssimo(n.1936)


MEIO POETA

No dia em que Mônica e Otávio voltaram da lua-de-mel, Mônica chegou na casa dos pais e se trancou no quarto com a mãe. Precisava contar uma coisa e não queria que o pai ouvisse.
- O Otávio é poeta, mamãe.
A mãe levou as mãos à boca.
- Minha Virgem Santíssima!
Depois perguntou:
- Como você descobriu?
- Na primeira noite. A lua estava cheia. Ele fez umas frases sobre a luz da lua no meu corpo.
- Mas você tem certeza que era poesia? Rimava?
- Não rimava, mas era poesia. Ele mesmo disse, mamãe! Eu perguntei “O que é isso?” e ele respondeu “Eu sou meio poeta”.
- Bem que seu pai desconfiou...
- Você acha que devemos contar ao papai?
- É claro. E agora.
O pai disse “Eu sabia” e determinou que chamassem Otávio para se explicar. Mônica disse que Otávio ficara de buscá-la ali depois do trabalho. Os três esperaram a chegada de Otávio. A mãe, temendo algum excesso do pai, tentou amenizar a situação:
- Ele disse que é só “meio” poeta...
O pai não disse nada. Quando soou a campainha da porta, mandou que a filha fosse para o quarto. Otávio cumprimentou os sogros efusivamente - era a primeira vez que os via depois da festa do casamento - , mas logo percebeu a frieza deles.
- O que foi? - perguntou.
- Você não nos contou que era poeta - disse o pai.
- Mas eu não...
- Não adianta negar. A Mônica nos contou. Você pensou que ela não nos contaria?
- Mas foi só um...
- Sei. Um poeminha. É assim que começa. Um versinho hoje, um versinho amanhã. Não demora você estará fazendo poemas épicos, odes a qualquer coisa, diariamente. Já vi acontecer. Acabará abandonando o emprego, roubando a mesada da minha filha, para sustentar o hábito.
- Mas eu...
- Você vai dizer que pode parar quando quiser. É o que todos dizem.
- Meu filho - interveio a mãe, aflita -, você não se dá conta do mal que a poesia pode fazer? Há quanto tempo você...
- Não interessa - interrompeu o pai - O que ele fez antes não nos interessa. Mas agora está casado. Tem responsabilidades, tem que trabalhar para manter a família. Está num ramo competitivo, não pode facilitar. Eu sei, eu sei. A poesia é tentadora. Eu mesmo, na mocidade, fiz meus sonetos...
- Eurico!
- Nunca lhe contei isto, Marta, mas fiz. Felizmente tive um pai que me orientou e parei a tempo. A Mônica foi criada sem qualquer poesia. Qualquer sugestão de métrica, nós reprimíamos. E sempre a alertamos contra os poetas.
- Será - sugeriu a mãe - que não existe um programa de reabilitação? Alguém com quem você possa se aconselhar...
Mais uma vez o pai a interrompeu.
- A decisão tem que ser sua, Otávio. E tem que ser agora. Você compreende que não podemos deixar a Mônica sair desta casa, onde sempre teve toda a segurança, para viver com um poeta. Não nos dias de hoje. Faça a sua escolha. A Mônica, uma família, uma vida normal... ou a poesia.
Otávio jurou que abandonaria a poesia para sempre, a Mônica foi chamada, os dois foram para o apartamento novo, Mônica um pouco desconfiada. Otávio ouvindo a advertência, na saída: “Olhe lá, hein?” Hoje, sempre que fala com Mônica pelo telefone, a mãe pergunta:
- E o Otávio?
- Está bem, mamãe.
- Nunca mais...
- Nunca.
Às vezes, quando a família está toda reunida, Otávio diz umas coisas que provocam troca de olhares entre os outros e a suspeita de uma recaída. Depois a Mônica assegura que aquilo não é poesia, é só o jeito dele. Mas seu Eurico e dona Marta vivem preocupados com a filha. Nas noites de lua cheia, então, dona Marta nem consegue dormir direito.
Luís Fernando Veríssimo, Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 25/4/93

25 de setembro de 2004


Mário de Carvalho(n.1944)

"Eu vejo raramente um amigo que é dado à quietação e sofrido de enfados. Trabalha nunca percebi em quê, dizem que negócios sedentários e rendíveis. Ele uma vez tentou explicar-me, mas aborreceu-se a meio, e eu também. Deixámos o bocejo para as calendas. O que nele é mais irritante é aquilo que a ciência popular designa por «saúde mental», défice de atribulações de alma. Volta e meia está casado, ou amigado, volta e meia, não. Tenho de usar de cautela para não lhe trocar o nome das companheiras, mais por elas que por ele. Tem filhos dispersos por idades, em lugares distantes, vai pagando pensões e almoços confirmativos de paternidade, pelas festas apropriadas. Não é feliz, nem infeliz, antes pelo contrário. Conhecemo-nos em miúdos no liceu e encontramo-nos quando calha. Sabe responder a um silêncio com outro silêncio, qualidade sem preço. É possível ler tranquilamente os semanários a seu lado. Numa destas Primaveras chamou-me da sua casa de praia, arribada nuns penhascos oceânicos, ao norte de Santa Rita. Detesto meter-me à estrada, mas ele insistiu: Tinha uma coisa para me mostrar. Valia a pena? Sim."

Mário de Carvalho, Contos Vagabundos


http://www.terravista.pt/ilhadomel/4201/paginas/mario_carvalho.htm
http://www.instituto-camoes.pt/bases/100livros/mariocarvalho.htm

24 de setembro de 2004


F.Scott Fitzgerald(1896-1940)

"Either you think, or else others have to think for you and take power from you, pervert and discipline your natural tastes, civilize and sterilize you."

F.Scott Fitzgerald

http://www.fitzgeraldsociety.org/teaching/index.html
http://www.sc.edu/fitzgerald/

22 de setembro de 2004

Árvore, árvore. Um dia serei árvore.
Com a maternal cumplicidade do verão.
Que pombos torcazes
anunciam.

Um dia abandonarei as mãos
ao barro ainda quente do silêncio,
subirei pelo céu,
às árvores são consentidas coisas assim.

Habitarei então o olhar nu,
fatigado do corpo, esse deserto
repetido nas águas,
enquanto a bruma é sobre as folhas

que pousa as mãos molhadas.
E o lume.

Eugénio de Andrade, Com o Sol em cada Sílaba

.

21 de setembro de 2004


H.G.Wells (1866-1946)

"A time will come when a politician who has willfully made war and promoted international dissension will be as sure of the dock and much surer of the noose than a private homicide. It is not reasonable that those who gamble with men's lives should not stake their own."

H.G.Wells


http://www.readbookonline.net/books/Wells/73/
http://www.online-literature.com/wellshg/

20 de setembro de 2004


Stevie Smith (1902-1971)


Not Waving But Drowning

Nobody heard him, the dead man,
But still he lay moaning:
I was much farther out than you thought
And not waving but drowning.

Poor chap, he always loved larking
And now he's dead
It must have been too cold for him his heart gave way,
They said.

Oh, no no no, it was too cold always
(Still the dead one lay moaning)
I was much too far out all my life
And not waving but drowning.

Stevie Smith, Not Waving But Drowning

http://www.bbc.co.uk/bbcfour/audiointerviews/profilepages/smiths2.shtml

http://oldpoetry.com/authors/Stevie%20Smith

19 de setembro de 2004


William Golding(1911-1996)

"Consider a man riding a bicycle. Whoever he is, we can say three things about him. We know he got on the bicycle and started to move. We know that at some point he will stop and get off. Most important of all, we know that if at any point between the beginning and the end of his journey he stops moving and does not get off the bicycle he will fall off it. That is a metaphor for the journey through life of any living thing, and I think of any society of living things."

William Golding

http://www.william-golding.co.uk/
http://nobelprize.org/literature/laureates/1983/golding-lecture.html


16 de setembro de 2004

Poema do Silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais,ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
~Meu Deus em que não creio!
e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.


José Régio