30 de dezembro de 2005

Podemos ficar sentados a noite inteira
à espera de um sinal que nunca chega,
podemos num desespero sem nome perder
o gosto de tudo, enquanto o eu permanece
brilhante, estupidamente brilhante,
a sussurrar-nos ao ouvido a desgraça;
podemos, numa lufa-lufa, ir de filme
em filme, de livro em livro, como quem
sem terra procura uma casa, um lugar
a que possa chamar seu, onde tenha os seus
pertences e tempo para rir e tempo para
se aborrecer. Podemos ter pena de nós próprios,
podemos viver.


*Além dos sentidos comuns, poderes usa-se nos Açores como sinónimo de muito.


Carlos Bessa, Em Partes Iguais, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

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29 de dezembro de 2005

Sernesi,«Abetelle pistoiesi»
Raffaello Sernesi (1838-1866)

21 de dezembro de 2005

música para todos os tempos #2




Johann Sebastian Bach ||
«Concertos Brandeburgueses»
Concentus Musicus Wien, Nikolaus Harnoncourt (dir.)
Concerto Brandeburguês n.º 4, em Sol Maior, bwv 1049 -- Allegro [1.º andamento]

20 de dezembro de 2005



Victor Matos e Sá (1926-1975)

Quando os teus olhos absorvem
todas as cores da minha
mais íntima tristeza,
e compreendes e calas e prometes
um lugar qualquer na tua alma,
e a tua voz demora a regressar
ao neutro compromisso das palavras,

sei que as tuas mãos ajudariam
a limpar estas lágrimas antigas
por dentro do meu rosto.

Victor Matos e Sá

.

Todas as noites canto, porque sou pago para isso, mas as canções que ouviste eram pézinhos e sapateiras para os turistas de passagem e para aqueles americanos que se estão a rir lá ao fundo e que daqui a pouco se vão embora aos ziguezagues. As minhas verdadeiras canções são só quatro chama-ritas, pois o meu repertório é escasso, e depois eu estou a ficar velho, e fumo de mais e a minha voz está rouca. Tenho de vestir este balandrau açoreano que se usava em tempos, porque os americanos gostam do pitoresco, depois voltam para o Texas e contam que estiveram numa tasca, numa ilha perdida, onde um velho com uma capa cantava o folclore do seu povo. Querem a viola de arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho «de cheiro» como se fosses dos nossos, és estrangeiro e finges falar como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Disseste que és escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver com a minha. Todos os livros são estúpidos, há sempre pouco de verdadeiro neles, e contudo li muitos nos últimos trinta anos, mesmo italianos, naturalmente todos traduzidos, aquele de que mais gostei chamava-se Canaviais no vento, de uma tal Deledda, leste-o? E depois tu és jovem e gostas de mulheres, bem vi como olhavas para aquela mulher muito bonita com o pescoço alto, olhaste para ela toda a noite, não sei se estás com ela, também ela olhava para ti e talvez te pareça estranho, mas tudo isto acordou em mim qualquer coisa, deve ser porque bebi de mais. Sempre escolhi o demais na vida e isto é uma perdição, mas não há nada a fazer quando se nasce assim.

Em frente da nossa casa havia uma atafona, nesta ilha chamava-se assim, era uma espécie de nora que andava à volta, agora já não as há, falo-te de há muitos anos, ainda tu não tinhas nascido. Se penso nela ouço ainda o seu ranger, é um dos ruídos da minha infância que me ficaram na memória, a minha mãe mandava-me com o cântaro buscar água e eu, para enganar o cansaço, acompanhava o movimento com uma canção de embalar e às vezes adormecia deveras. Para além da nora havia um muro caiado e depois o precipício e, ao fundo, o mar. Éramos três irmãos e eu era o mais jovem. O meu pai era um homem lento, comedido nos gestos e nas palavras, com os olhos tão claros que pareciam de água, a sua barca chamava-se Madrugada, que era também, em família, o nome da minha mãe. Meu pai era baleeiro, como o fora seu pai, mas em certas épocas do ano, quando as baleias não passam, praticava a pesca às moreias e nós íamos com ele, e também a nossa mãe. Agora já não se faz assim, mas quando eu era criança usava-se um ritual que fazia parte da pesca. As moreias pescam-se de noite, quando nasce a lua, e para as atrair usava-se uma canção que não tinha palavras: era um canto, uma melodia primeiro baixa e lânguida e depois aguda, nunca mais voltei a ouvir um canto com tanta pena, parecia que vinha do fundo do mar ou das almas perdidas na noite, era um canto tão antigo como as nossas ilhas, agora já ninguém o sabe, perdeu-se, e talvez seja melhor assim porque trazia consigo uma maldição ou um destino, como que uma magia. Meu pai saía com a barca, era noite, movia os remos devagar, perpendicularmente, para não fazer barulho, e nós, os meus irmãos e a minha mãe, sentávamo-nos na falésia e começávamos aquele canto. Às vezes eles calavam-se e queriam que fosse eu a chamar porque diziam que a minha voz era melodiosa como nenhuma outra e que as moreias não resistiam. Penso que a minha voz não era melhor do que a dos outros: queriam que fosse eu a cantar, só porque era o mais novo e dizia-se que as moreias gostam das vozes claras. Talvez fosse uma superstição sem fundamento, mas isso não tem importância. Depois, nós crescemos e a minha mãe morreu. Meu pai ficou mais taciturno e, às vezes, à noite, ficava sentado no muro da falésia a olhar para o mar. A partir daí, saíamos só para as baleias, nós três éramos grandes e fortes e o meu pai confiou-nos arpões e lanças, como exigia a sua idade. Depois, um dia, os meus irmãos deixaram-nos. O do meio partiu para a América, só o disse no dia da partida, eu fui ao porto despedir-me dele, o meu pai não foi. O outro foi trabalhar como camionista para o continente, era um rapaz risonho que sempre gostara do ruído dos motores, quando o guarda republicano nos veio participar o acidente, eu estava sozinho em casa e ao meu pai contei-o à ceia.

Continuámos nós dois a ir às baleias. Agora era mais difícil, era preciso recorrer a assalariados, porque com menos de cinco pessoas não se pode sair e o meu pai teria querido que eu me casasse, porque uma casa sem uma mulher não é uma verdadeira casa. Mas eu tinha vinte e cinco anos e gostava de brincar ao amor, todos os domingos ia até ao porto e mudava de namorada, na Europa era tempo de guerra e nos Açores a gente ia e vinha, todos os dias um navio atracava aqui ou noutro lado, e em Porto Pim falavam-se todas as línguas.

Encontrei-a um domingo no porto. Estava vestida de branco, com os ombros nus e com um chapéu de renda. Parecia saída de um quadro e não de um daqueles navios carregados de pessoas que fugiam para as Américas. Olhei-a longamente e também ela olhou para mim. É estranho como o amor pode entrar dentro de nós. Em mim entrou ao notar duas pequenas rugas que mal se lhe esboçavam à volta dos olhos e pensei assim: já não é muito nova. Pensei assim talvez porque, ao rapaz que eu era, uma mulher madura parecia mais velha do que a sua idade real. Que tinha pouco mais de trinta anos só o soube muito mais tarde, quando saber a sua idade já não servia de nada. Dei-lhe os bons-dias e perguntei-lhe em que podia ser-lhe útil. Indicou-me a mala que estava a seus pés. Leva-a ao «Bote», disse-me na minha língua. O «Bote» não é um lugar para senhoras, disse eu. Eu não sou uma senhora, respondeu, sou a nova patroa.

No domingo seguinte, voltei à cidade. O «Bote» nesse tempo era um local estranho, não era exactamente uma taberna para pescadores, e eu só lá tinha entrado uma vez. Sabia que havia dois séparés nas traseiras onde diziam que se jogava a dinheiro e a sala do bar tinha uma abóbada baixa, com um grande espelho de arabescos e as mesas de pau de figueira. Os clientes eram todos estrangeiros, parecia que estavam todos em férias, na realidade passavam o dia a espiarem-se, cada um fingindo ser de um país que não era o seu, e nos intervalos jogavam às cartas. O Faial, nesses anos, era um lugar incrível. Ao balcão servia um canadiano baixo, com patilhas em bico, chamava-se Denis e falava português como os de Cabo Verde, conhecia-o porque ao sábado vinha ao porto comprar peixe, no «Bote» podia-se jantar, ao domingo. Foi ele que depois me ensinou inglês.

Queria falar com a patroa, disse-lhe eu. A senhora vem só depois das oito, respondeu com superioridade. Sentei-me a uma mesa e mandei vir o jantar. Por volta das nove chegou ela, havia outros clientes, viu-me e cumprimentou-me distraidamente, e depois sentou-se num canto onde estava um velho senhor de bigode branco. Só então me apercebi de como era bonita, duma beleza que me punha em fogo, era isto que me tinha levado ali, mas até àquele momento não o tinha percebido realmente. E naquele momento o que eu percebia ordenou-se dentro de mim com clareza e quase me deu uma vertigem. Passei a noite a olhá-la, com os punhos apoiados às têmporas, e quando saiu, segui-a a uma certa distância. Caminhava ligeira, sem se voltar, como quem não se importa de ser seguida, passou a porta da muralha de Porto Pim e começou a descer a baía. Do outro lado do golfo, onde acaba o promontório, isolada entre as rochas, entre um canavial e uma palmeira, há uma casa de pedra. Talvez já a tenhas visto, agora é uma casa desabitada e as janelas estão a cair, tem algo de sinistro, qualquer dia o telhado desaba, se é que ainda não desabou. Ela morava ali, mas então era uma casa branca, com esquadrias azuis à volta das portas e das janelas. Entrou, fechou a porta e a luz apagou-se. Eu sentei-me numa rocha e esperei. A meio da noite iluminou-se uma janela, ela assomou e eu olhei-a. As noites são silenciosas em Porto Pim, basta falar no escuro para se ouvir à distância. Deixa-me entrar, supliquei-lhe. Ela fechou a persiana e apagou a luz. A lua estava a nascer, com um véu vermelho de lua de Verão. Sentia-me perturbado, a água marulhava à minha volta, tudo era tão intenso e ao mesmo tempo longe, e lembrei-me de quando era criança e à noite, da falésia, chamava as moreias, e então tive uma fantasia, não pude conter-me, e comecei a cantar aquele canto. Cantei muito devagar, como um lamento ou uma súplica, com a mão atrás da orelha para guiar a voz. Daí a pouco a porta abriu-se e eu entrei no escuro da casa e encontrei-me nos seus braços. Chamo-me Yeborath, disse apenas.

Tu sabes o que é traição? A traição, a traição verdadeira, é quando sentes vergonha e desejarias ser outro. Eu queria ter sido outro quando fui dizer adeus ao meu pai e os seus olhos me seguiam, enquanto eu embrulhava o arpão no oleado e o pendurava num prego da cozinha e punha a tiracolo a viola que me dera pelos meus vinte anos: decidi mudar de profissão, disse rapidamente, vou cantar num local de Porto Pim, virei ver-te aos sábados. Mas naquele sábado não fui e nem sequer no sábado seguinte, e mentindo a mim próprio dizia para comigo que iria no outro sábado. E assim veio o Outono, e passou o Inverno, e eu cantava. Fazia também outras pequenas tarefas, porque às vezes alguns clientes bebiam demais e para os amparar ou mandá-los embora era preciso um braço forte que Denis não tinha. E depois escutava o que diziam os clientes que fingiam estar de férias, é fácil escutar as confidências dos outros quando se é cantor de taberna, e como vês também é fácil fazê-las. Ela esperava-me na casa de Porto Pim e agora já não precisava de bater à porta. Perguntava-lhe: quem és, donde vens?, porque não nos vamos embora para longe destes tipos absurdos que fingem jogar às cartas?, quero ficar contigo para sempre. Ela ria e deixava-me perceber a razão daquela sua vida, e dizia-me: espera mais um pouco e partiremos juntos, tens de ter confiança em mim, mais do que isto não posso dizer-te. Depois punha-se nua à janela, fitava a lua e dizia-me: canta o teu chamariz, mas em voz baixa. Enquanto eu cantava, pedia-me que a amasse, e eu possuía-a de pé, apoiada ao parapeito da janela enquanto ela fitava a noite como se esperasse qualquer coisa.

Aconteceu no dia 10 de Agosto. Pelo São Lourenço o céu está cheio de estrelas cadentes, contei treze ao voltar para casa. Encontrei a porta fechada, e bati. Depois voltei a bater com mais força, porque a luz estava acesa. Ela abriu e ficou à porta, mas eu afastei-a com o braço. Parto amanhã, disse, a pessoa que esperava voltou. Sorria como se me estivesse a agradecer, e quem sabe porquê pensei que ela estava a pensar no meu canto. No fundo do quarto um vulto mexeu-se. Era um homem idoso que se estava a vestir. O que é que esse quer?, perguntou-lhe naquela língua que agora eu percebia. Está bêbado, disse ela, em tempos era baleeiro, mas deixou o arpão pela viola, durante a tua ausência foi meu criado. Manda-o embora, disse ele sem olhar para mim.

Havia um reflexo claro sobre a baía de Porto Pim. Percorri o golfo como quando, num sonho, te encontras de repente do outro lado da paisagem. Não pensei em nada porque não queria pensar. A casa do meu pai estava às escuras, porque ele deitava-se cedo. Mas não estava a dormir, como muitas vezes acontece com os velhos que jazem imóveis no escuro como se fosse uma espécie de sono. Entrei sem acender a luz, mas ele ouviu-me. Voltaste, murmurou. Eu fui à parede do fundo e peguei no meu arpão. Movia-me à luz da lua. Não se vai às baleias a esta hora da noite, disse ele da sua cama. É uma moreia, disse eu. Não sei se percebeu o que eu queria dizer, mas não replicou, nem se mexeu. Pareceu-me que me fazia um sinal de adeus com a mão, mas talvez fosse a minha imaginação ou um jogo de sombra na penumbra. Não o voltei a ver, morreu muito antes de eu cumprir a minha pena. O meu irmão também não o voltei a ver. No ano passado, recebi uma fotografia dele, está um homem gordo, de cabelos brancos, rodeado por um grupo de desconhecidos que devem ser os filhos e as noras, estão sentados na varanda de uma casa de madeira e as cores são exageradas como as dos postais. Dizia-me que se quisesse ir para o pé dele, lá há trabalho para todos e à vida é fácil. Quase me pareceu cómico. O que quer dizer uma vida fácil, quando a vida já passou?

E se tu ficares mais um pouco e a voz não me falhar, esta noite canto-te a melodia que marcou o destino desta minha vida. Há trinta anos que não a canto e pode ser que a voz não aguente. Não sei porque o faço, ofereço-a àquela mulher do pescoço alto e à força que tem um rosto quando aflora noutro, e isto certamente tocou-me uma corda. E a ti, italiano, que vens aqui todas as noites e se vê que és ávido de histórias verdadeiras para fazeres delas papel, ofereço-te esta história que acabas de ouvir. Podes até pôr o nome de quem ta contou, mas não aquele por que sou conhecido nesta tasca, que é um nome para turistas de passagem. Escreve que esta é a verdadeira história de Lucas Eduíno, que matou com o arpão a mulher que julgava sua, em Porto Pim.

Ah, só numa coisa não me tinha mentido, descobri-o no processo. Chamava-se mesmo Yeborath. Se isso pode ter importância.

Antonio Tabucchi, in Mulher de Porto Pim

19 de dezembro de 2005


Vitorino Nemésio (1901-1978)




Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da Caldeira sentiu-se uma tropeada, depois pó e um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope: ― Slowly! Let go him alone ... Os cavalos meteram a trote e puseram-se a par. O de Roberto Clark vinha suado, com um pouco de espuma na barriga e sinal de sangue num ilhal. O de Margarida, enxuto, meteu a passo.
― Ah, não posso mais ... O tio desafiou-me e deixou-se ficar para trás! Assim não vale ...
― Largaste-te logo ... Eu bem te disse: prender e folgar ... prender e folgar ... E depois, deixaste-o fazer a curva a galope com a mão do outro lado. That’s dangerous! ...
Roberto Clark exprimia-se correntemente em português; só tinha um nada de entonação ingénua, cheia de ohs, que tanto divertia a sobrinha; às vezes hesitava um pouco, à procura de certas palavras, fazendo estalar os dedos como quem deixa fugir precisamente a que convinha. Era um rapaz alto, espadaúdo. Vestia um casaco de sport e calção encordoado, à Chantilly, um boné escocês enterrado até às sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa, como que metidos n’água.
― Que bom, galopar! E depois, este não é como a Jóia, que apanhou aquele passo escangalhado da charrette ...
― Quê? A égua de teu pai, o peru? ... Half-bred ... Já lhe disse que tem de vendê-la.
― Ah! Se o tio conseguisse! ...
― Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos.
Margarida sorriu; mas mostrou-se reservada, lassou um pouco as rédeas do bridão e compôs o cabelo. Não sabia o que era fazer anos desde a última vez que os passara na Pedra da Burra, nas Vinhas, quando o avô ainda se mexia e teimava em meter-se ao Canal. Em Fevereiro havia muitos dias de mar bravo, as lanchas afocinhavam nas grandes covas de água cavadas pelo vento da Guia. Para tirar o avô das escadinhas eram duas pessoas: o Manuel Bana dentro da lancha a agarrá-lo por um braço, o cobrador nos degraus do cais, de mão estendida, e sempre aquele perigo de escorregar nos limos. Mas teimava; metia-se no vão da janela do pomar quase entalado pela mesa, estendia o baralho das paciências na coberta de tapete com a garrafa de whisky ao lado, a caixa dos charutos e dos sisos do whist aberta. Ficava ali tardes ... a ouvir a tesoura de Manuel Bana, que podava defronte.
Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
― Estás velha, hem? ...
― Velha, não; mas enfim ... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...
― Viajar ou envelhecer?
― Talvez as duas coisas ...
Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas.
... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas ... sem ninguém.
O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.

Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, IN-CM, 1999 (excerto do cap. IX)

16 de dezembro de 2005

Kandinsky, «Murnau with Church»
Vasil'yevich Kandinsky (1866-1944)

15 de dezembro de 2005





Esplanadas

um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde:
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebemos
uma palavra, uma jura, uma alegria

José Tolentino de Mendonça, Baldios


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12 de dezembro de 2005

Edvard Munch, «Melancolia»
Edvard Munch (1863-1944)

11 de dezembro de 2005


Manuel Gusmão (1945)


É isto: a noite de manhã
Tu levantas-te

Manhã e noite não se vêem ao espelho
antes o estilhaçam para dentro
desencontram-se interminavelmente

mas ouvem-se uma à outra entre as salas da casa

Tu estás súbita ali na esquina do corredor
sinto por momentos a tua cara negra
e a imensidão do teu corpo anoitecido

passas-me a manhã devagar
de mão a mão
como um mapa fosforescente

onde por certo íamos morrer


Manuel Gusmão, Mapas O Assombro A Sombra
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10 de dezembro de 2005


Emily Dickinson (1830-1886)


Ample make this bed.
Make this bed with awe;
In it wait till judgment break
Excellent and fair.

Be its mattress straight,
Be its pillow round;
Let no sunrise’ yellow noise
Interrupt this ground.

Emily Dickinson

9 de dezembro de 2005

música para todos os tempos #1



D. Bomtempo & Carlos Seixas ||
«Estudos e Toccatas»
Sofia Lourenço (piano) || Numérica
[12] -- Carlos Seixas, Toccata

8 de dezembro de 2005


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7 de dezembro de 2005



Noam Chomsky (n. 1928)


«A good way of finding out who won a war, who lost a war, and what the war was about, is to ask who's cheering and who's depressed after it's over - this can give you interesting answers. So, for example, if you ask that question about the Second World War, you find out that the winners were the Nazis, the German industrialists who had supported Hitler, the Italian Fascists and the war criminals that were sent off to South America - they were all cheering at the end of the war. The losers of the war were the anti-fascist resistance, who were crushed all over the world. Either they were massacred like in Greece or South Korea, or just crushed like in Italy and France. That's the winners and losers. That tells you partly what the war was about. Now let's take the Cold War: Who's cheering and who's depressed? Let's take the East first. The people who are cheering are the former Communist Party bureaucracy who are now the capitalist entrepreneurs, rich beyond their wildest dreams, linked to Western capital, as in the traditional Third World model, and the new Mafia. They won the Cold War. The people of East Europe obviously lost the Cold War; they did succeed in overthrowing Soviet tyranny, which is a gain, but beyond that they've lost - they're in miserable shape and declining further. If you move to the West, who won and who lost? Well, the investors in General Motors certainly won. They now have this new Third World open again to exploitation - and they can use it against their own working classes. On the other hand, the workers in GM certainly didn't win, they lost. They lost the Cold War, because now there's another way to exploit them and oppress them and they're suffering from it.»

5 de dezembro de 2005



Christina Rossetti (1830-1894)


Somewhere or Other


Somewhere or other there must surely be
The face not seen, the voice not heard,
The heart that not yet - never yet — ah me!
Made answer to my word.

Somewhere or other, may be near or far;
Past land and sea, clean out of sight;
Beyond the wandering moon, beyond the star
That tracks her night by night.

Somewhere or other, may be far or near;
With just a wall, a hedge, between;
With just the last leaves of the dying year
Fallen on a turf grown green.

Christina Rossetti

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4 de dezembro de 2005


Rainer Maria Rilke (1875-1926)


CANÇÃO

Tu, a quem não digo que acordado
fico à noite a chorar;
tu, cujo ser me faz cansado
como um berço a embalar;
tu, que me não dizes quando velas
por amor de mim;
diz-me: — Se pudéssemos aguentar
sem a acalmar
a pompa deste amor até ao fim?

...............................................................

Ora olha os amantes e o que eles sentem:
mal vêm as confissões,
quão breve mentem!

..............................................................

Só tu me fazes só. Só tu posso trocar.
Um momento és bem tu, depois é o sussurrar
ou um perfume sem traços.
Ai! a todas eu perdi entre os meus braços!
Só tu em mim renasces, sempre e a toda a hora:
Por nunca te abraçar é que te tenho agora.

Rainer Maria Rilke



3 de dezembro de 2005

Domingos Rebelo, «Mar nos arredores de Ponta Delgada»
Domingos Rebelo (1891-1975)

2 de dezembro de 2005




Georges Seurat (1859-1891)

30 de novembro de 2005



Mark Twain (1835-1910)




THE ADVENTURES OF HUCKLEBERRY FINN


NOTICE:
Persons attempting to find a motive in this narrative will be prosecuted; persons attempting to find a moral in it will be banished; persons attempting to find a plot in it will be shot.

EXPLANATORY:
In this book a number of dialects are used, to wit: the Missouri negro dialect; the extremest form of the backwoods Southwestern dialect; the ordinary "Pike County" dialect; and four modified varieties of this last. The shadings have not been done in a haphazard fashion, or by guesswork; but painstakingly, and with the trustworthy guidance and support of personal familiarity with these several forms of speech.
I make this explanation for the reason that without it many readers would suppose that all these characters were trying to talk alike and not succeeding.




CHAPTER I

You don't know about me without you have read a book by the name of The Adventures of Tom Sawyer; but that ain't no matter. That book was made by Mr. Mark Twain, and he told the truth, mainly. There was things which he stretched, but mainly he told the truth. That is nothing. I never seen anybody but lied one time or another, without it was Aunt Polly, or the widow, or maybe Mary. Aunt Polly—Tom's Aunt Polly, she is—and Mary, and the Widow Douglas is all told about in that book, which is mostly a true book, with some stretchers, as I said before.

Now the way that the book winds up is this: Tom and me found the money that the robbers hid in the cave, and it made us rich. We got six thousand dollars apiece—all gold. It was an awful sight of money when it was piled up. Well, Judge Thatcher he took it and put it out at interest, and it fetched us a dollar a day apiece all the year round—more than a body could tell what to do with. The Widow Douglas she took me for her son, and allowed she would sivilize me; but it was rough living in the house all the time, considering how dismal regular and decent the widow was in all her ways; and so when I couldn't stand it no longer I lit out. I got into my old rags and my sugar-hogshead again, and was free and satisfied. But Tom Sawyer he hunted me up and said he was going to start a band of robbers, and I might join if I would go back to the widow and be respectable. So I went back.

The widow she cried over me, and called me a poor lost lamb, and she called me a lot of other names, too, but she never meant no harm by it. She put me in them new clothes again, and I couldn't do nothing but sweat and sweat, and feel all cramped up. Well, then, the old thing commenced again. The widow rung a bell for supper, and you had to come to time. When you got to the table you couldn't go right to eating, but you had to wait for the widow to tuck down her head and grumble a little over the victuals, though there warn't really anything the matter with them,—that is, nothing only everything was cooked by itself. In a barrel of odds and ends it is different; things get mixed up, and the juice kind of swaps around, and the things go better.

After supper she got out her book and learned me about Moses and the Bulrushers, and I was in a sweat to find out all about him; but by and by she let it out that Moses had been dead a considerable long time; so then I didn't care no more about him, because I don't take no stock in dead people.

Pretty soon I wanted to smoke, and asked the widow to let me. But she wouldn't. She said it was a mean practice and wasn't clean, and I must try to not do it any more. That is just the way with some people. They get down on a thing when they don't know nothing about it. Here she was a-bothering about Moses, which was no kin to her, and no use to anybody, being gone, you see, yet finding a power of fault with me for doing a thing that had some good in it. And she took snuff, too; of course that was all right, because she done it herself.

. . . . . . . . . . .

24 de novembro de 2005


António Gedeão (1906-1997)

Poema do poste com flores amarelas


Vieram os operários, puseram o poste de ferro na berma do passeio
e foram-se para voltar noutro dia.
O poste tinha sido pintado há pouco de verde
e quando lhe batia o sol rutilava como as escamas dos dragões.
Mesmo junto do poste, no passeio, havia uma árvore que dava flores amarelas,
e o vento fez cair algumas flores amarelas sobre o poste verde.
As pessoas que por ali passavam diziam "que chatice de poste",
mas o poeta sorria para as flores amarelas.

António Gedeão

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21 de novembro de 2005

Magritte, «Clairvoyance»

René Magritte (1898-1967)
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20 de novembro de 2005


Nazim Hikmet (1901-1963)


Falling Leaves

I've read about falling leaves in fifty thousand poems novels and so on
watched leaves falling in fifty thousand movies
seen leaves fall fifty thousand times
fall drift and rot
felt their dead shush shush fifty thousand times
underfoot in my hands on my fingertips
but I'm still touched by falling leaves
especially those falling on boulevards
especially chestnut leaves
and if kids are around
if it's sunny
and I've got good news for friendship
especially if my heart doesn't ache
and I believe my love loves me
especially if it's a day I feel good about people
I'm touched by falling leaves
especially those falling on boulevards
especially chestnut leaves

Nazim Hikmet

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18 de novembro de 2005


Manuel António Pina (1943)


Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

14 de novembro de 2005

Claude Monet, Impression, Soleil Levant

Claude Monet (1840-1926)
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31 de outubro de 2005



Jan Vermeer van Delft (1632-1675)




John Keats (1795-1821)



When I have fears that I may cease to be
Before my pen has glean'd my teeming brain,
Before high-piled books, in charact'ry,
Hold like rich garners the full-ripen'd grain;
When I behold, upon the night's starr'd face
Huge cloudy symbols of a high romance,
And think that I may never live to trace
Their shadows with the magic hand of chance;
And when I feel, fair creature of an hour!
That I shall never look upon thee more,
Never have relish in the faery power
Of unreflecting love; — then on the shore
Of the wide world I stand alone, and think
Till love and fame to nothingness do sink.

30 de outubro de 2005


Ezra Pound (1885-1972)



The River-Merchant's Wife: A Letter

After Li Po

While my hair was still cut straight across my forehead
I played about the front gate, pulling flowers.
You came by on bamboo stilts, playing horse,
You walked about my seat, playing with blue plums.
And we went on living in the village of Chokan:
Two small people, without dislike or suspicion.


At fourteen I married My Lord you.
I never laughed, being bashful.
Lowering my head, I looked at the wall.
Called to, a thousand times, I never looked back.


At fifteen I stopped scowling,
I desired my dust to be mingled with yours
Forever and forever and forever.
Why should I climb the look out?


At sixteen you departed,
You went into far Ku-to-yen, by the river of swirling eddies,
And you have been gone five months.
The monkeys make sorrowful noise overhead.


You dragged your feet when you went out.
By the gate now, the moss is grown, the different mosses,
Too deep to clear them away!
The leaves fall early this autumn, in wind.
The paired butterflies are already yellow with August
Over the grass in the West garden;
They hurt me. I grow older.
If you are coming down through the narrows of the river Kiang,
Please let me know beforehand,
And I will come out to meet you
As far as Cho-fu-Sa.

Ezra Pound

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25 de outubro de 2005

Pablo Picasso, Auto-Retrato
Pablo Picasso (1891-1973)
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23 de outubro de 2005


Emanuel Félix (1936-2004)


DISA LINDEROTH


Direi
Que regresso do teu nome

Que desço lentamente
Pétala a pétala
A escada da lembrança.


Emanuel Félix, Seis Nomes de Mulher
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almost dawn
blackbirds on the telephone wire
waiting
as I eat yesterday's
forgotten sandwich
at 6 a.m.
on a quiet Sunday morning.

one shoe in the corner
standing upright
the other laying on it's
side.

yes, some lives were made to be
wasted.

Charles Bukowski


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18 de outubro de 2005


Vinícius de Morais (1913-1980)


Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.

Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícius de Morais, Antologia Poética

17 de outubro de 2005


António Ramos Rosa (1924)


Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim

E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe

Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.


António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra

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13 de outubro de 2005


Paul Eluard (1895-1952)


Nous avons fait la nuit

Nous avons fait la nuit je tiens ta main je veille
Je te soutiens de toutes mes forces
Je grave sur un roc l'étoile de tes forces
Sillons profonds où la bonté de ton corps germera
Je me répète ta voix cachée ta voix publique
Je ris encore de l'orgueilleuse
Que tu traites comme une mendiante
Des fous que tu respectes des simples où tu te baignes
Et dans ma tête qui se met doucement d'accord avec la tienne avec la nuit
Je m'émerveille de l'inconnue semblable à toi semblable à tout ce que j'aime
Qui est toujours nouveau.

Paul Eluard

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12 de outubro de 2005

Desenho de Fernando Pessoa, de Abel Manta
João Abel Manta (1888-1982)
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10 de outubro de 2005

8 de outubro de 2005


John Lennon (1940-1980)


Working Class Hero

As soon as you're born they make you feel small
By giving you no time instead of it all
Till the pain is so big you feel nothing at all
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

They hurt you at home and they hit you at school
They hate you if you're clever and they despise a fool
Till you're so fucking crazy you can't follow their rules
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

When they've tortured and scared you for twenty odd years
Then they expect you to pick a career
When you can't really function you're so full of fear
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

Keep you doped with religion and sex and TV
And you think you're so clever and classless and free
But you're still fucking peasants as far as I can see
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

There's room at the top they are telling you still
But first you must learn how to smile as you kill
If you want to be like the folks on the hill
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be

If you want to be a hero well just follow me
If you want to be a hero well just follow me

John Lennon

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4 de outubro de 2005

João da Ega

29 de setembro de 2005


Luís Miguel Nava (1957-1995)


Sem outro intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava

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28 de setembro de 2005


Eduardo Bettencourt Pinto (1954)

Poema no guardanapo

Nadas na sombra de uma grande ausência.
Cobrem-te os vidros do espanto,
fragmentos de ardidos instantes,
o peso da água incendiada.
Imaginas então o ressoar
de uns pés infantis
na fotografia mais distante
do teu nome.Sabes então que só na terra
onde escondes o coração
correrás por entre as palmeiras
e o eco dos primeiros rios.

Eduardo Bettencourt Pinto

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25 de setembro de 2005


valter hugo mãe (1971)



agora deixo-te morrer, vou
embora, porque o livro
oblitera as palavras e as
que recuso sustentam-me
amanhã, quando deitar o
sono na areia, o sol a
pesar-me o corpo e tu, todo
o tamanho do mar, calado,
apenas mais um
morto

valter hugo mãe, três minutos antes de a maré encher

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7 de setembro de 2005


Camilo Pessanha(1867-1926)

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine

Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.


Camilo Pessanha, Clepsidra

6 de setembro de 2005

Victoria Sheridan, «Pool with ladder»



Sete anos me aguardam de incertezas, O gato gordo,
sobre o muro, é apenas uma figura transitória. Tu vais
ficando, um livro abandonado no melhor
do enredo, aberto para sempre sobre a cama. Eu

sento-me à janela onde houve uma vez uma figueira.
E fico. Aguardo provavelmente a tua voz no silêncio
demorado dos quartos ao entardecer. E também adormeço,
se não for a memória do ruído ensurdecedor dos
espelhos, rebentando pela casa em mil pequenos cacos
incertos. Sete anos

para reler uma história demasiado conhecida ou
folhear um livro branco até ao fim. O gato já
desapareceu. Digo que escolhe, como tu, outra
cama para desafiar a lua. Eu não, eu eu fico.

Maria do Rosário Pedreira, A Casa e o Cheiro dos Livros


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5 de setembro de 2005


Pedro da Silveira (1922-2003)


FINDA

Não ser mais que um cisco de terra: mas terra viva,
poeira
e aragem.
Ter um casaco feito de estrelas e sóis vagabundos
e um pouco de dia nascido dentro do coração.

Pedro da Silveira


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4 de setembro de 2005


José Luís Peixoto (1974)

Não vás. E não fui. Ainda que todo o dia, toda a vida, tivesse esperado aquele instante, único entre todos os instantes, ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira pequena daquele instante, não fui. Não vás. Ainda que se tivesse levantado uma cegonha a planar como um abraço que nunca demos, mas que julgámos possível, ainda que todo eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por mim, hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os mais sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornas­se um lugar penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdi­çados antes do tempo, durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória má do seu tempo, no tédio de não ter e de não esperar nada. Não vás. E não fui. (...) Tenho de levantar-me desta cama. Lentamente, fecho as pálpebras a este sol que olho de frente, este sol que entra por mim não para me lavar de penumbra, mas para me sufocar. Lentamente, levanto as pálpebras, e nas trevas deste quarto vejo surgir este corpo que, parado, não me parece meu. Aos poucos começo a tomar posse dele: primeiro, os braços, levanto-os; depois as pernas, sento-me na cama. Sou de novo eu. (...) Abro e fecho a porta da rua. A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço negro que as separa.

José Luís Peixoto, Nenhum Olhar, Lisboa, Temas e Debates, 2002
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1 de setembro de 2005


António Lobo Antunes (1942)


E PRONTO

Agora não. Talvez daqui a uma hora, amanhã, depois de amanhã, mais tarde, mas agora não. Agora aguen­ta-te, finge que és forte, sorri ou, pelo menos, puxa os cantos da boca para cima: se mantiveres os olhos se­cos vão pensar que é um sorriso. Então basta pedir
- Com licença
e saíres. Quantos metros até à porta? Seis? Sete? Continua com os cantos da boca puxados para cima, caminha de lado se não tens espaço, vai pedindo
- Com licença
toca ao de leve costas, ombros
- Com licença
contorna esse homem gordo que te não ouviu
os homens gordos nunca ouvem
quatro metros, três metros, mais costas, mais ombros, a música mais intensa porque um amplificador mesmo em ci­ma de ti, já nem vês o bar, já nem vês a pista, vês cabeças, ca­ras, nenhum braço que te acene, te chame, cabeças que não tor­narás a ver, caras que nunca viste, o homem gordo ainda, a fi­car lá para trás, distante, duas costas, dois ombros e a porta, uma costas, uns ombros e a porta, nenhumas costas, nenhum ombros, a porta, ou seja a primeira porta, o bengaleiro a seguir, entrega a senha à empregada, recebe o casaco, agradece o ca­saco aumentando o sorriso
não soltes os cantos da boca
devias ter entregue uma moeda com a senha
entregaste?
a segunda porta, a rua, as pessoas que esperam para entrar e te olham com inveja, o segurança de braços afastados a impedir uma rapariga
- Um momento
pisca um olho ao segurança
pisca-se sempre um olho amigo ao segurança
cumprimenta-o
- Até amanhã
ou assim, tanto faz, não se entende com a música, aceita a palmadinha do segurança que afinal te conhece
- Tão cedo?
e as pessoas que esperam para entrar não somente com inveja, com respeito, hesitando quem serás, quem não se­rás, uma delas
a esperta
para o segurança, a apontar-te
- Sou prima desta tipa
o segurança a aumentar no interior da camisa
- Disse um momento não disse?
já quase ninguém, já ninguém, tu sozinha na esquina, procura as chaves do carro na mala entre os lenços de papel e os óculos escuros, deixaste o automóvel ali em baixo, na praceta, não esta travessa, a seguinte, a seguinte também não, havia um chafariz por aqui, depois da padaria fechada talvez
é uma padaria
que estes bairros antigos parecem-se todos, acanha­dos, estreitos, os caixotes do lixo a atravancarem o passeio pa­ra além do que os moradores deitam fora, uma cadeira, um fo­gão, um armário amolgado, aí está o chafariz no fim de contas não à esquerda, à direita, com uma luz municipal em cima, a coroa da monarquia, uma data na pedra
1845
nenhuma bica a deitar água, a praceta e o seu qua­drado de relva, o banco de madeira a que faltam duas ripas, um jipe e passando o jipe o teu carro, quando chegaste en­tre um jipe e uma furgoneta e agora entre um jipe e outro ji­pe, os dois tão unidos ao automóvel que vais gastar um sé­culo a torcer o volante, a avançar, a recuar, a tirá-lo de mo­do que bates devagarinho neste, bates devagarinho naquele, talvez desta vez
não, um avanço e um recuo ainda
um drogado fraternal a auxiliar a manobra, vasculhar na carteira
lenços de papel, óculos escuros, a agenda com a pá­gina do telefone do dentista solta
em busca de uma moeda para o drogado
a moeda que devias ter dado no bengaleiro
e o drogado a olhar-te sem olhar a moeda de forma que tranca o carro depressa, o estalido das portas e o drogado a troçar-te mas com os olhos sérios, a espalmar o nariz no vi­dro, a diminuir, inofensivo, à medida que avanças, becos, traves­sas, sentidos proibidos, onde se apanha a avenida, onde raio se apanhará a avenida, novos sentidos proibidos, uma camioneta de lavar a rua a impedir-te um caminho que pensas conhecer, uma seta a obrigar-te a contornar uma estátua que não é bem uma estátua, é metade de um homem a emergir de um calhau e nisto, sem que dês conta, o rio, armazéns, contentores, uma espécie de guarita e perto da guarita os pescadores da noite jo­gando linhas ao Tejo, o cheiro do gasóleo, o cheiro da vazante, percebes a água por reflexos, escamas, não necessitas de sorrir nem de puxar os cantos da boca, inclina um bocadinho o ban­co, acomoda-te melhor, liga o rádio, experimenta um cigarro e a página do telefone do dentista a surgir da carteira juntamen­te com o maço
não apenas o dentista, Diná, David, Duarte
um papelinho amarelo colado por baixo do telefone a lembrar-te
quarta-feira onze
a consulta, guarda a página, se não achas o isqueiro tens o isqueiro do carro, empurra-se e daqui a nada salta com a ponta vermelha, não gostas do isqueiro do carro porque o ta­baco queimado fica preso aos aneizinhos em brasa, um dos pes­cadores procura isco na alcofa, os morros de Almada, uma paz tão grande não é, um sossego lento não é, uma calma não é, a tristeza a dissolver-se, fecha os olhos, descansa, e vais ver que daqui a nada já não te lembras que acabámos, daqui a nada já nem te lembras de mim.

António Lobo Antunes, Visão, 23 /05/02
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26 de agosto de 2005


Julio Cortázar (1914-1984)


EL FUTURO

Y se muy bien que no estarás.
No estarás en la calle
en el murmullo que brota de la noche
de los postes de alumbrado,
ni en el gesto de elegir el menú,
ni en la sonrisa que alivia los completos en los subtes
ni en los libros prestados,
ni en el hasta mañana.
No estarás en mis sueños,
en el destino original de mis palabras,
ni en una cifra telefónica estarás,
o en el color de un par de guantes
o una blusa.
Me enojaré
amor mío
sin que sea por ti,
y compraré bombones
pero no para ti,
me pararé en la esquina
a la que no vendrás
y diré las cosas que sé decir
y comeré las cosas que sé comer
y soñaré los sueños que se sueñan.
Y se muy bien que no estarás
ni aquí dentro de la cárcel donde te retengo,
ni allí afuera
en ese río de calles y de puentes.
No estarás para nada,
no serás mi recuerdo
y cuando piense en ti
pensaré un pensamiento
que oscuramente trata de acordarse de ti.

Julio Cortázar

.j

25 de agosto de 2005


Ana Marques Gastão (1962)

Ver-nos-emos um dia
náufragos ou cegos
como animais da sombra.
Está escrito.
Na latitude total
da manhã
na aurora trazida pela noite.
Ver-nos-emos na palavra
de instantânea luz
gerada
no resíduo vivo
do amor.
Ver-nos-emos
tu no meu corpo
eu no teu
para celebrarmos
o regresso
da subita apetência
de vida
que um dia
um anjo ofereceu.

Ana Marques Gastão

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24 de agosto de 2005


Jorge Luís Borges (1899-1986)


Entre mi amor y yo han de levantarse
Trescientas noches como trescientas paredes
Y el mar será una magia entre nosotros.

No habrá sino recuerdos.
Oh tardes merecidas por la pena,
Noches de esperanza de mirarte
Campos de mi camino, firmamento
Que estoy viviendo y perdendo...

Definitiva como un mármol
Entristecerá tu ausencia otras tardes.

Jorge Luís Borges

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21 de agosto de 2005

 David Marshall, «Daen from the depths»



Va a amanecer. Hay noche aún sobre tus llagas.
Ya vienen los cuchillos del día. No
te desnudes en la luz, cierra los ojos.
Quédate en tu cama sangrienta.

Antonio Gamoneda

19 de agosto de 2005

 Gustave Caillebotte, «A Young Man at His Window»
Gustave Caillebotte (1848-1894)
.

17 de agosto de 2005

Victoria Sheridan, «Grey Sea»


All my life
I sought
an angel.
And he appeared
in order to say:
"I am no angel !"

Regina Derieva.

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16 de agosto de 2005


António Nobre (1867-1900)


O SONO DO JOÃO


O João dorme... (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquele cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...

O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu Irmão:
"Na vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir."

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...

E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá o João acordar...

António Nobre,

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