19 de junho de 2010






Desce Baltasar ao vale, vai para casa, é certo que o trabalho ainda não despegou na obra, mas, vindo ele tão esforçadamente de longe, desde Santo António do Tojal em um só dia, não esqueçamos, tem direito a recolher mais cedo, depois de descangados e pensados os bois. O tempo, às vezes, parece não passar, é como uma andorinha que faz o ninho no beiral, sai e entra, vai e vem, mas sempre à nossa vista, julgaríamos, nós e ela, que iríamos ficar assim a eternidade, ou metade dela, o que já não seria mau. Mas, de repente, estava e já não está, mesmo agora a vi, onde é que se meteu, e se temos à mão um espelho, Jesus, como o tempo passou, como eu me tornei velho, ainda ontem era a flor do bairro, e hoje nem bairro nem flor. Baltasar não tem espelhos, a não ser estes nossos olhos que o estão vendo a descer o caminho lamacento para a vila, e eles são que lhe dizem, Tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Bal­tasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escân­dalo da vila de Mafra, agarrarem-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver, agora que eles estão juntos até os nossos olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos.
José Saramago, Memorial do Convento



5 comentários:

ana disse...

óptima escolha, digo eu, que gosto de tão pouco do Saramago.

Graça disse...

Entendo, levei anos a evitar Saramago, a começar a ler e a pôr de parte livro após livro. Até que me vi na obrigação de ler Memorial do Convento. E percebi que estava enganada.

josefa disse...

Olá Graça, comoveu-me(também a mim...) o texto que seleccionaste do Memorial do Convento.

Graça disse...

Obrigada,Josefa. Quem consegue sensibilizar as pessoas através da escrita não deve ser assim tão mau...
Beijinho.

Ricardo Sousa disse...

Não conheço o livro, mas esta passagem diz-nos realmente muita coisa sobre o amor entre duas pessoas. Não há preconceito nem vergonha que consiga demover este belo casal de se abraçar à vista de todos, mostrando como se amam.
Obrigado Graça por partilhares este momento. Sabes bem como aprecio este género de texto.
Beijinho