31 de março de 2005

Voam gaivotas rente ao chão.
Dizem que é a chuva a ir chegar.
Mas não, neste momento não:
São só gaivotas rente ao chão
Só a voar.

Assim também se há alegria
Dizem que assim que a dor que vem.
Talvez. Que importa? Se este dia
Tem aqui a sua alegria;
Que é que a dor tem?

Nada: só o rastro do futuro,
Quando vier, ficará triste.
Por ora é o dia bom e puro.
Hoje o futuro não existe.
Há um muro.

Goza o que tens, ébrio de seres!
Deixa o futuro onde ele está.
Poemas, vinho, ideais, mulheres —
Seja o que for se é o que há,
Há para o teres.

Mais tarde... Mas mais tarde sê
O que o mais tarde te for dando.
Por ora aceita, ignora e crê.
Sê rente à terra, mas voando,
Como a gaivota é.

Fernando Pessoa

Nota: Nem me atrevo a dizer que este é, possivelmente, o poema de Pessoa de que mais gosto, até porque talvez não seja verdade. Até porque posso reler a qualquer altura um outro poema e "lê-lo" pela primeira vez - e ser esse (re)lido o eleito. E por que é que se há-de ter um poema preferido de Pessoa?

.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tens toda a razão! Acho que quem se encontra nos poemas de Pessoa não pode ter, jamais, um poema preferido. Há, com certeza, um perfeito para cada ocasião, para cada sentimento e estado de espírito. Escolher um poema no meio de todos os fantásticos que nos deixou seria como dizer que uma flor é mais bela que outra.

já agora, parabéns pelo blog e obrigado por partilhares connosco todas estas palavras. Continua!