2 de abril de 2005


Hans Christian Andersen (1805-1875)


O VALENTE SOLDADINHO DE CHUMBO

Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos iguaizinhos, pois haviam nascido da mesma velha colher de chumbo. Arma ao ombro, olhar firme, uniforme vermelho e azul; que orgulhoso aspecto eles tinham! A primeira coisa que ouviram neste mundo, quando foi erguida a tampa da caixa onde estavam cerrados, foi este grito: «Soldados de chumbo!», soltado por um razinho que batia alegremente as palmas. Haviam-lhe sido oferecidos como prenda do seu aniversário e ele divertia-se a pô-los em formatura em cima da mesa. Todos os soldados eram perfeitamente iguais, com excepção de um deles que apenas possuía uma perna: fora o último a sair do molde e o chumbo não fora suficiente. No entanto, mantinha-se tão firme sobre a sua única perna como os demais sobre as duas. É precisamente sobre ele que iremos concentrar a nossa atenção.
Em cima da mesa onde estavam alinhados os nossos soldadinhos, encontravam-se muitos outros brinquedos; mas o mais curioso deles todos era um encantador castelo de cartão. Através das suas janelinhas podiam-se ver as salas. Cá fora erguiam-se arvorezinhas em redor de um pequeno espelho que imitava um lago; cisnes de cera nadavam nesse lago, reflectindo-se nele. Tudo aquilo era muito bonito, mas o que havia de ainda mais bonito era uma pequena rapariga de pé junto da porta aberta do castelo. Também ela era de cartão, mas trazia um saiote de tule transparente e muito leve e pelas costas, à maneira de uma écharpe, uma fitinha azul, estreita, no meio da qual brilhava uma lantejoula tão grande como o seu rosto. A pequena rapariga connservava os braços erguidos, pois tratava-se de uma bailarina, (erguia uma perna tão alto que o soldadinho de chumbo nem a via, supondo que a rapariga apenas tinha, tal como ele, uma perna.
«Aqui está a mulher que me convinha», pensou ele, «mas é uma senhora. Mora num palácio, eu numa caixa com mais vinte e quatro camaradas e não encontraria na minha caserna lugar para ela. Apesar de tudo, é forçoso que trave conhecimento com ela.»
E, dizendo isto, estendeu-se atrás de uma caixa de tabaco. Dali podia contemplar à sua vontade a elegante bailarinazinha, que continuava a manter-se sobre uma perna, sem perder o equilíbrio.
À noite, todos os outros soldados foram colocados na sua caixa e as pessoas da casa foram-se deitar. Imediatamente os brinquedos começaram a divertir-se sozinhos: primeiro jogaram à cabra-cega, depois brincaram às guerras e, finalmente, organizaram um baile. Os soldados de chumbo estavam agitados dentro da sua caixa, pois gostariam muito de assistir, mas como poderiam erguer a tampa da caixa? O quebra-nozes deu cambalhotas e o pau de giz traçou mil e uma loucuras na ardósia. O ruído tornou-se tão forte que o canário acordou e desatou a cantar. Os únicos que não se mexiam era o soldado de chumbo e a pequena bailarina. Ela continuava a apoiar-se na ponta do pé, com os braços erguidos; ele, valentemente, sobre a sua única perna e sem deixar de a espiar.
Soou a meia-noite... e, crac!, eis que a tampa da caixa do tabaco salta, mas em vez de ter tabaco dentro, ela tinha um pequeno feiticeiro negro. Era uma caixa de surpresas.
— Soldado de chumbo—disse o feiticeiro—, dirige os teus olhares noutra direcção!
Mas o soldado fingiu não o ouvir.
— Espera por amanhã e irás ver! — insistiu o feiticeiro.
No dia seguinte, quando as crianças se levantaram, puseram o soldadinho de chumbo no parapeito da janela; subitamente, levado pelo feiticeiro ou pelo vento, tombou do terceiro andar, vindo cair de cabeça para baixo na rua. Que terrível queda! Encontrou-se com a perna no ar e todo o seu corpo apoiado na barretina e com a baioneta espetada entre as pedras do pavimento.
A criada e o rapazinho desceram para o procurar, mas por um triz não o espezinharam sem o ver. Se o soldado tivesse gritado «Tomem cuidado!», tê-lo-iam encontrado, mas pareceu-lhe que isso seria desonrar o uniforme.
A chuva começou a cair e em breve as bátegas se sucediam sem intervalo; verificou-se assim um verdadeiro dilúvio. Depois da tempestade, passaram por ali dois garotos:
— Olha— disse um deles —, está aqui um soldado de chumbo! Vamos transformá-lo em marinheiro.
Com um jornal velho fizeram um barco, meteram dentro o soldadinho e puseram o barco na valeta, por onde corria um rio de água. Os dois garotos corriam ao lado do barco, batendo as mãos. Que ondas, santo Deus! Como era forte a corrente! A verdade é que chovera a cântaros. O barco de papel balouçava sacudido pelas águas; mas, apesar de todas aquelas sacudidelas, o soldadinho de chumbo permanecia impassível, com o olhar firme e a arma ao ombro.
De repente o barco foi sorvido por uma sarjeta que dava para um canal onde era tão escuro como dentro da caixa dos soldados.
«Para onde vou eu agora?», pensou ele. «Sim, sim, é o feiticeiro que me faz todo este mal. No entanto, se a menina bailarina estivesse no barco comigo, a escuridão, mesmo que fosse duas vezes mais profunda, não me faria a mínima diferença.»
Subitamente surgiu uma grande ratazana habitante do canal:
— Mostra-me o teu passaporte, o teu passaporte!
Mas o soldadinho de chumbo manteve-se em silêncio e apertou a sua espingarda. O barco continuou o seu caminho e a ratazana perseguiu-o. Uff! Rangia os dentes e gritava às palhas e aos sacos de madeira: — Detenham-no! Detenham-no! Não pagou a passagem nem mostrou o passaporte.
A corrente, porém, tornava-se mais forte, cada vez mais forte, já o soldadinho divisava a luz do dia, ouvindo ao mesmo tempo um murmúrio capaz de assustar o mais intrépido dos homens. Havia no extremo do canal uma queda de água tão perigosa para ele como para nós seria uma catarata. Estava tão perto dela que não se podia deter. O barco precipitou-se: o pobre soldado conservava-se tão rígido quanto lhe era possível e ninguém teria ousado afirmar que ele sequer tivesse piscado os olhos. O barco, após ter rodado diversas vezes sobre si mesmo, enchera-se de água; ia-se afundar. A água subia até ao pescoço do soldado, o barco mergulhava cada vez mais. O papel desdobrava-se e a água fechava-se sobre a cabeça do nosso herói. Nessa altura pensou na gentil bailarinazinha que não voltaria a ver e julgou ouvir uma voz que cantava:

Soldado, o perigo é grande;
Eis a morte que te espera!

O papel desfez-se e o soldado, passando através dele, foi arrastado para o fundo. No mesmo instante foi devorado por um grande peixe.
Foi então que as coisas se puseram negras para o desgraçado! Era ainda pior que no canal. E, além disso, estava extremamente apertado. Sempre intrépido, porém, o soldadinho de chumbo estendeu-se ao comprido com a arma ao ombro.
O peixe agitava-se em todos os sentidos, fazendo pavorosos movimentos; finalmente deteve-se e pareceu ser trespassado por um clarão de luz. O dia surgiu e alguém exclamou: «Um soldado de chumbo!» O peixe fora pescado, vendido, levado para a cozinha e a cozinheira abrira-o com uma grande faca. Ela pegou com dois dedos o soldado de chumbo, pelo meio do corpo, e levou-o para a sala, onde toda a gente quis contemplar aquele homem notável que viajara no ventre de um peixe. No entanto, o soldado não estava vaidoso. Puseram-no em cima da mesa, e ali — como acontecem por vezes coisas estranhas no mundo! — encontrou-se na mesma casa de onde caíra pela janela. Reconheceu as crianças e os brinquedos que estavam em cima da mesa, o encantador castelo com a gentil bailarinazinha; conservava ainda uma perna no ar, pois também ela era valente. O soldadinho de chumbo ficou de tal modo comovido que desejaria ter chorado chumbo, mas isso não era nada conveniente. Olhou-a, ela olhou-o, mas não pronunciaram uma única palavra.
De repente, um rapazinho pegou nele, e sem qualquer razão, atirou-o ao fogo; era, sem dúvida, o feiticeiro da caixa de surpresas que causava tudo aquilo.
O soldadinho de chumbo ficou de pé, iluminado por um forte clarão, sofrendo um horrível calor. Todas as suas cores haviam desaparecido; ninguém saberia dizer se teria sido devido às vicissitudes da viagem ou ao desgosto. Continuava a fitar a rapariguinha e também ela o fitava. Sentia-se derreter; mas, sempre valente, conservava a sua espingarda ao ombro. Subitamente abriu-se uma porta, a corrente de ar arrebatou a bailarina e, como uma sílfide, voou sobre o fogo perto do soldado e desapareceu em chamas. O soldado de chumbo transformara-se num pequeno volume.
No dia seguinte, quando a criada veio tirar as cinzas, encontrou no meio delas um pequeno coração de chumbo; tudo o que restara da bailarina fora a lantejoula, que o fogo enegrecera completamente.

Hans Christian Andresen, Contos Imortais
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