15 de agosto de 2005

Jerry Bauer
Inês Pedrosa (1962)


O PRIMEIRO AMOR POR CARTA

Antes que o Inverno acabe, ainda muitos corações de liceu vão cair das carteiras abaixo, perdidinhos de paixão. Pode ser mentira, mas sabe a chocolate. Pode não lavar os dentes senão por ordem imperial da mãe, mas tem hálito de beijo. Pode ter as unhas sujas de tinta ou de óleo de mota, mas tem 220 volts em cada dedo. Oh, se tem.
O que é que se há-de fazer? Escrever-lhe. Dizer-lhe tudo, tudinho, de um fôlego só, sem rede. Bom... tudo, tudo, tam­bém não, para não esgotar logo o assunto.
Para começar, deve evitar-se qualquer menção de trivialida­des quotidianas. É errado come­çar uma carta de amor assim: «Querida Anabela. Estava a apanhar as quinze peúgas sujas e desemparelhadas que tinha debaixo da cama quando me lembrei do teu sorriso encanta­dor.» É que as adolescentes são admiravelmente imunes aos dotes domésticos de um rapaz. Isso não as seduz. Nestas idades, elas ainda mantêm a plena matu­ridade da infância; prendem-se apenas ao essencial. O que lhes interessa avaliar num namorado é a qualidade da exposição (ou seja, se ele vai andar de mão dada com ela na rua ou não), a quantidade de ar que ele conse­gue guardar no peito (ou seja, se ele é capaz de fazer com que um só beijo dure cerca de uma hora), a variedade da conversa­ção (ou seja, se ele sabe falar de outras coisas para além de motas, futebol e rock) e a sensi­bilidade do coração (ou seja, se ele é capaz de a acompanhar ao dentista e ao supermercado ou se está apenas disponível para fes­tas e cinemas). É só isto o que lhes interessa, e já não é pouco.
Dir-me-ão: então e a beleza? Mas a beleza é um conceito tão estranho e intransmissível que nem vale a pena pensar nele. Camões ficou cego de um olho, mais ou menos na flor da idade, e nem por isso perdeu cotação no mercado. Se preferirem refe­rências mais contemporâneas, lembrem-se de uma Tina Turner, de uma Tracy Chapman, de uma Montserrat Caballé*, de um Woody Allen ou de um Pedro Almodóvar. Se se esfor­çarem um bocadinho, verão que ainda lhes ocorrem outros nomes, como por exemplo o daquele gorducho da Turma B que tem uma graça de morrer. Há sempre um halo fúnebre de um ouro intenso sobre a cabeça do ser amado, pelo menos nos primeiros tempos, É o medo que temos de que ele não olhe para nós, que nos abandone de súbito ou que simplesmente se esfume nos céus estrangeiros de onde veio.
Os amados nunca são mortais como nós. São deuses, heróis mitológicos ou, no mínimo, génios. Nunca devemos esquecer-nos disto quando lhes escrevemos. «Fiquei aturdida quando te ouvi, ontem, na aula de Física e percebi que és tão inteligente como o Einstein.» É preciso ter cuidado no manejo do grau comparativo do adjec­tivo, que jamais deverá utilizar-se em relação a outros seres humanos. Se escreverem: «Fiquei aturdida quando percebi que és tão inteligente como o Alberto», minhas meninas, podem ficar certas de que con­tinuarão a jogar à apanhada nos recreios. E quem diz Alberto diz Bruce Willis, Robert De Niro ou Nastassja Kinsky.
Tratando-se de cartas destina­das a meninas, pode acrescentar--se à lista das comparações per­mitidas algumas flores (rosa mas não gladíolo, orquídea mas não glicínia, não vá a pequena pen­sar que está a ser comparada à vizinha do lado), todas as estre­las (da terra e do mar) e alguns outros elementos da Natureza, como o Sol e a Lua.
Um elemento estilístico de efeito garantido é a surpresa. Junte-se a um substantivo um adjectivo improvável e obter-se-á um resultado estrondoso. Exemplos: «coração guloso», «pernas angelicais», «olhos inflamáveis». Este método pode praticar-se também em extensão. Pode revelar-se à melhor aluna de Matemática que ela é tão bela como uma equação de segundo grau. De qualquer forma, é pre­ciso ter tento no tinteiro, não vá escrever-se de repente que ela é tão inteligente como um cravo. A não ser, obviamente, que o cravo seja densamente vermelho e que a rapariga esteja a par dos acontecimentos do 25 de Abril, o que é arriscar demasiado.
A subtileza é o segredo do sucesso. Reticências e pontos de exclamação são de evitar, por redundantes. Se a paixão é tão forte que lhe tolhe o discerni­mento, o melhor será mesmo começar por um simples super­lativo absoluto. «Belíssima prin­cesa» ou «Lindíssimo príncipe» servem muito bem, para come­çar uma segunda ou uma ter­ceira carta. É que na primeira, para dizer a verdade, a vigilân­cia deve igualar a coragem, de modo a domesticar a caça. Há que admitir a hipótese de o nosso alvo ainda não ter repa­rado em nós. Trata-se, pois, de um cerco suave. «Bom dia, Bruno André» e «Menina bonita» são as introduções ade­quadas a uma primeira exposi­ção do problema.
Estas diferenças de trata­mento não indicam, ao contrá­rio do que possa parecer, qual­quer discriminação sexual proibida pela Constituição. É do conhecimento corrente que nenhuma menina se aflige parti­cularmente por ser considerada bonita. Já com os meninos não é assim. As mamãs deles deram-lhes sempre a entender que um homem deve ser, antes de mais, forte e másculo como o Carlos Cruz. Esta perversão educacio­nal é secular e faz com que os nossos jovens ainda hoje se arre­piem perante o epíteto de «belo». Pensam, na melhor das hipóteses, que estamos a brincar com eles. Na pior das hipóteses, acreditam em nós piamente e tornam-se insuportáveis.
Posto isto, a carta pode con­tinuar em estilo unissexo. O que há a dizer, seja menino ou menina, é mais ou menos o seguinte: «Nestes últimos dias, tenho pensado muito em ti. Não sei porquê. Podes explicar-me? Espero um sinal teu. O teu sor­riso bonito. Uma luz secreta sobre a tua pele.» As frases cur­tas dão muito arranjo, até por­que se pode trocar-lhes a ordem, caso se pretenda tornar a coisa mais críptica e original ou caso se queira escrever duas cartas a duas pessoas diferentes de uma assentada.
Deve sempre fazer-se um ras­cunho, tanto para assegurar a elegância final do trabalho como para garantir a nossa segurança pessoal. Guardando o esboço, prevenimos simultaneamente a limpeza do trabalho (uma carta cheia de riscos e erros impres­siona mal) e a possibilidade de uma catastrófica repetição. Mesmo que o Antímio da nossa actual predilecção não conheça o Alberto do nosso futuro, é melhor não arriscar. Puxe pela imaginação. Nunca se copie a si mesmo, porque um dia o objecto l pode encontrar-se com o objecto 2 num qualquer bar, e podem chegar à conclusão que ambos amaram aquela interes­sante pessoa, e podem mostrar mutuamente essas cartas, de homem para homem. Nessa altura, isso já não desabará sobre si como um desaire senti­mental, mas os seus talentos epistolares ficarão para sempre pelas ruas da amargura. E não vale a pena. Há tantos poetas prontos a salvar-nos!
Sobretudo, fuja à tentação de obnubilar o amado com poesia da sua própria lavra. Isso só fun­ciona quando ele já estiver tol­dado pelos seus outros encantos. Numa primeira declaração de amor por escrito pode simples­mente copiar-se, com uma cali­grafia bem apurada, um belo poema de um profissional. Eugénio de Andrade, Sofia de Mello Breyner Andresen, Carlos Drummond de Andrade, Ruy Belo, Herberto Helder ou Mário Cesariny de Vasconcelos são pis­tas seguras. Mas, acima de tudo, resista à tentação de fazer passar a obra por sua. Mais vale pare­cer erudito do que ser mentiroso.
Claro que procurar poemas para um amor completamente novo é complicado, porque os melhores poemas são sempre fei­tos de restos de um amor já muito antigo e temperados com mágoas, intimidades e memórias cheias de musgo.
As cartas de amor escrevem-se sempre à noite e deixam-se de molho, num bom caudal de lágrimas, até à manhã seguinte. Depois relêem-se e, infelizmente, rasgam-se. Esqueça-se de as reler e guarde o privilégio da dor maior para depois. Se um dia alguém lhe perguntar, faça de conta que já nem se lembra da loucura que foi amar assim. Diga sempre que sim.
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* Esta é aquela rapariga que cantou com o Freddie Mercury dos Queen.

Inês Pedrosa, Expresso, 24/2/1990
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