12 de agosto de 2005


Miguel Torga (1907-1995)



LIVRO DE HORAS

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Miguel Torga


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3 comentários:

zoto disse...

pois, era isso, que são três [e mesmo nos melhores momentos escapou-me sempre a segunda, mais ainda que].

Anónimo disse...

Olá! Obrigada por me lembrares desta gente das letras e fico feliz por saber que são do mesmo signo que o meu!!! Quem sabe...um dia...mais tarde...os alunos estarão estudando na Escola Torga e «Eu»: Torga no seu aspecto telúrico e «eu» na minha relação com o mar.Bonito paralelismo (lolol). Beijocas

Graça disse...

Pois é, biga, estas semanas estão cheias de talentos- e olha que não consegui representar toda a gente.Gosto muito deste falso acto de contricção do Torga, até porque não simpatizo com as ideias de culpa e de perdão.´
Bem, confesso que preferia ser esquecida quando "partisse" - assim nem dava pela diferença. Quanto a ti,palpita-me que vais ser recordada, já estou a ver:
- Onde é que estudas?
- Eu? Na ETE.
Soa bem: ETE - uma escola do outro mundo...
Beijinho!