26 de agosto de 2005


Julio Cortázar (1914-1984)


EL FUTURO

Y se muy bien que no estarás.
No estarás en la calle
en el murmullo que brota de la noche
de los postes de alumbrado,
ni en el gesto de elegir el menú,
ni en la sonrisa que alivia los completos en los subtes
ni en los libros prestados,
ni en el hasta mañana.
No estarás en mis sueños,
en el destino original de mis palabras,
ni en una cifra telefónica estarás,
o en el color de un par de guantes
o una blusa.
Me enojaré
amor mío
sin que sea por ti,
y compraré bombones
pero no para ti,
me pararé en la esquina
a la que no vendrás
y diré las cosas que sé decir
y comeré las cosas que sé comer
y soñaré los sueños que se sueñan.
Y se muy bien que no estarás
ni aquí dentro de la cárcel donde te retengo,
ni allí afuera
en ese río de calles y de puentes.
No estarás para nada,
no serás mi recuerdo
y cuando piense en ti
pensaré un pensamiento
que oscuramente trata de acordarse de ti.

Julio Cortázar

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25 de agosto de 2005


Ana Marques Gastão (1962)

Ver-nos-emos um dia
náufragos ou cegos
como animais da sombra.
Está escrito.
Na latitude total
da manhã
na aurora trazida pela noite.
Ver-nos-emos na palavra
de instantânea luz
gerada
no resíduo vivo
do amor.
Ver-nos-emos
tu no meu corpo
eu no teu
para celebrarmos
o regresso
da subita apetência
de vida
que um dia
um anjo ofereceu.

Ana Marques Gastão

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24 de agosto de 2005


Jorge Luís Borges (1899-1986)


Entre mi amor y yo han de levantarse
Trescientas noches como trescientas paredes
Y el mar será una magia entre nosotros.

No habrá sino recuerdos.
Oh tardes merecidas por la pena,
Noches de esperanza de mirarte
Campos de mi camino, firmamento
Que estoy viviendo y perdendo...

Definitiva como un mármol
Entristecerá tu ausencia otras tardes.

Jorge Luís Borges

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21 de agosto de 2005

 David Marshall, «Daen from the depths»



Va a amanecer. Hay noche aún sobre tus llagas.
Ya vienen los cuchillos del día. No
te desnudes en la luz, cierra los ojos.
Quédate en tu cama sangrienta.

Antonio Gamoneda

19 de agosto de 2005

 Gustave Caillebotte, «A Young Man at His Window»
Gustave Caillebotte (1848-1894)
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17 de agosto de 2005

Victoria Sheridan, «Grey Sea»


All my life
I sought
an angel.
And he appeared
in order to say:
"I am no angel !"

Regina Derieva.

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16 de agosto de 2005


António Nobre (1867-1900)


O SONO DO JOÃO


O João dorme... (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquele cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...

O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu Irmão:
"Na vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir."

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...

E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá o João acordar...

António Nobre,

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15 de agosto de 2005

Jerry Bauer
Inês Pedrosa (1962)


O PRIMEIRO AMOR POR CARTA

Antes que o Inverno acabe, ainda muitos corações de liceu vão cair das carteiras abaixo, perdidinhos de paixão. Pode ser mentira, mas sabe a chocolate. Pode não lavar os dentes senão por ordem imperial da mãe, mas tem hálito de beijo. Pode ter as unhas sujas de tinta ou de óleo de mota, mas tem 220 volts em cada dedo. Oh, se tem.
O que é que se há-de fazer? Escrever-lhe. Dizer-lhe tudo, tudinho, de um fôlego só, sem rede. Bom... tudo, tudo, tam­bém não, para não esgotar logo o assunto.
Para começar, deve evitar-se qualquer menção de trivialida­des quotidianas. É errado come­çar uma carta de amor assim: «Querida Anabela. Estava a apanhar as quinze peúgas sujas e desemparelhadas que tinha debaixo da cama quando me lembrei do teu sorriso encanta­dor.» É que as adolescentes são admiravelmente imunes aos dotes domésticos de um rapaz. Isso não as seduz. Nestas idades, elas ainda mantêm a plena matu­ridade da infância; prendem-se apenas ao essencial. O que lhes interessa avaliar num namorado é a qualidade da exposição (ou seja, se ele vai andar de mão dada com ela na rua ou não), a quantidade de ar que ele conse­gue guardar no peito (ou seja, se ele é capaz de fazer com que um só beijo dure cerca de uma hora), a variedade da conversa­ção (ou seja, se ele sabe falar de outras coisas para além de motas, futebol e rock) e a sensi­bilidade do coração (ou seja, se ele é capaz de a acompanhar ao dentista e ao supermercado ou se está apenas disponível para fes­tas e cinemas). É só isto o que lhes interessa, e já não é pouco.
Dir-me-ão: então e a beleza? Mas a beleza é um conceito tão estranho e intransmissível que nem vale a pena pensar nele. Camões ficou cego de um olho, mais ou menos na flor da idade, e nem por isso perdeu cotação no mercado. Se preferirem refe­rências mais contemporâneas, lembrem-se de uma Tina Turner, de uma Tracy Chapman, de uma Montserrat Caballé*, de um Woody Allen ou de um Pedro Almodóvar. Se se esfor­çarem um bocadinho, verão que ainda lhes ocorrem outros nomes, como por exemplo o daquele gorducho da Turma B que tem uma graça de morrer. Há sempre um halo fúnebre de um ouro intenso sobre a cabeça do ser amado, pelo menos nos primeiros tempos, É o medo que temos de que ele não olhe para nós, que nos abandone de súbito ou que simplesmente se esfume nos céus estrangeiros de onde veio.
Os amados nunca são mortais como nós. São deuses, heróis mitológicos ou, no mínimo, génios. Nunca devemos esquecer-nos disto quando lhes escrevemos. «Fiquei aturdida quando te ouvi, ontem, na aula de Física e percebi que és tão inteligente como o Einstein.» É preciso ter cuidado no manejo do grau comparativo do adjec­tivo, que jamais deverá utilizar-se em relação a outros seres humanos. Se escreverem: «Fiquei aturdida quando percebi que és tão inteligente como o Alberto», minhas meninas, podem ficar certas de que con­tinuarão a jogar à apanhada nos recreios. E quem diz Alberto diz Bruce Willis, Robert De Niro ou Nastassja Kinsky.
Tratando-se de cartas destina­das a meninas, pode acrescentar--se à lista das comparações per­mitidas algumas flores (rosa mas não gladíolo, orquídea mas não glicínia, não vá a pequena pen­sar que está a ser comparada à vizinha do lado), todas as estre­las (da terra e do mar) e alguns outros elementos da Natureza, como o Sol e a Lua.
Um elemento estilístico de efeito garantido é a surpresa. Junte-se a um substantivo um adjectivo improvável e obter-se-á um resultado estrondoso. Exemplos: «coração guloso», «pernas angelicais», «olhos inflamáveis». Este método pode praticar-se também em extensão. Pode revelar-se à melhor aluna de Matemática que ela é tão bela como uma equação de segundo grau. De qualquer forma, é pre­ciso ter tento no tinteiro, não vá escrever-se de repente que ela é tão inteligente como um cravo. A não ser, obviamente, que o cravo seja densamente vermelho e que a rapariga esteja a par dos acontecimentos do 25 de Abril, o que é arriscar demasiado.
A subtileza é o segredo do sucesso. Reticências e pontos de exclamação são de evitar, por redundantes. Se a paixão é tão forte que lhe tolhe o discerni­mento, o melhor será mesmo começar por um simples super­lativo absoluto. «Belíssima prin­cesa» ou «Lindíssimo príncipe» servem muito bem, para come­çar uma segunda ou uma ter­ceira carta. É que na primeira, para dizer a verdade, a vigilân­cia deve igualar a coragem, de modo a domesticar a caça. Há que admitir a hipótese de o nosso alvo ainda não ter repa­rado em nós. Trata-se, pois, de um cerco suave. «Bom dia, Bruno André» e «Menina bonita» são as introduções ade­quadas a uma primeira exposi­ção do problema.
Estas diferenças de trata­mento não indicam, ao contrá­rio do que possa parecer, qual­quer discriminação sexual proibida pela Constituição. É do conhecimento corrente que nenhuma menina se aflige parti­cularmente por ser considerada bonita. Já com os meninos não é assim. As mamãs deles deram-lhes sempre a entender que um homem deve ser, antes de mais, forte e másculo como o Carlos Cruz. Esta perversão educacio­nal é secular e faz com que os nossos jovens ainda hoje se arre­piem perante o epíteto de «belo». Pensam, na melhor das hipóteses, que estamos a brincar com eles. Na pior das hipóteses, acreditam em nós piamente e tornam-se insuportáveis.
Posto isto, a carta pode con­tinuar em estilo unissexo. O que há a dizer, seja menino ou menina, é mais ou menos o seguinte: «Nestes últimos dias, tenho pensado muito em ti. Não sei porquê. Podes explicar-me? Espero um sinal teu. O teu sor­riso bonito. Uma luz secreta sobre a tua pele.» As frases cur­tas dão muito arranjo, até por­que se pode trocar-lhes a ordem, caso se pretenda tornar a coisa mais críptica e original ou caso se queira escrever duas cartas a duas pessoas diferentes de uma assentada.
Deve sempre fazer-se um ras­cunho, tanto para assegurar a elegância final do trabalho como para garantir a nossa segurança pessoal. Guardando o esboço, prevenimos simultaneamente a limpeza do trabalho (uma carta cheia de riscos e erros impres­siona mal) e a possibilidade de uma catastrófica repetição. Mesmo que o Antímio da nossa actual predilecção não conheça o Alberto do nosso futuro, é melhor não arriscar. Puxe pela imaginação. Nunca se copie a si mesmo, porque um dia o objecto l pode encontrar-se com o objecto 2 num qualquer bar, e podem chegar à conclusão que ambos amaram aquela interes­sante pessoa, e podem mostrar mutuamente essas cartas, de homem para homem. Nessa altura, isso já não desabará sobre si como um desaire senti­mental, mas os seus talentos epistolares ficarão para sempre pelas ruas da amargura. E não vale a pena. Há tantos poetas prontos a salvar-nos!
Sobretudo, fuja à tentação de obnubilar o amado com poesia da sua própria lavra. Isso só fun­ciona quando ele já estiver tol­dado pelos seus outros encantos. Numa primeira declaração de amor por escrito pode simples­mente copiar-se, com uma cali­grafia bem apurada, um belo poema de um profissional. Eugénio de Andrade, Sofia de Mello Breyner Andresen, Carlos Drummond de Andrade, Ruy Belo, Herberto Helder ou Mário Cesariny de Vasconcelos são pis­tas seguras. Mas, acima de tudo, resista à tentação de fazer passar a obra por sua. Mais vale pare­cer erudito do que ser mentiroso.
Claro que procurar poemas para um amor completamente novo é complicado, porque os melhores poemas são sempre fei­tos de restos de um amor já muito antigo e temperados com mágoas, intimidades e memórias cheias de musgo.
As cartas de amor escrevem-se sempre à noite e deixam-se de molho, num bom caudal de lágrimas, até à manhã seguinte. Depois relêem-se e, infelizmente, rasgam-se. Esqueça-se de as reler e guarde o privilégio da dor maior para depois. Se um dia alguém lhe perguntar, faça de conta que já nem se lembra da loucura que foi amar assim. Diga sempre que sim.
___________
* Esta é aquela rapariga que cantou com o Freddie Mercury dos Queen.

Inês Pedrosa, Expresso, 24/2/1990
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José Agostinho Baptista (1948)



NÃO É MÚSICA

Não é música o que ouvimos.
Não é de água este brilho de prata.

Eu estou aqui sobre as pontes do rio.
Outros são os que espreitam pela bruma das margens.

Talvez me lembre:
tu vinhas devagar pelo lado das acácias.
Cingias cada árvore e as colunas, os braços de um
deus cruel, o saber dos templos.

Não é um salmo o que ouvimos.
Não é de harpas este lamento,
não é o ofício das mãos esculpindo um rosto,
não é a palavra de deus que ecoa nas escarpas.

Algures te ocultas e não deixas sinais.
Quem és tu
cujo perfil se desvanece, cuja doçura se perde nos
confins da tarde?

Eu estou aqui onde se unem as margens, onde escurecem
as sendas e as sombras,
onde correm as nuvens, as pedras, as águas.

Outros são os que te aguardam pelo lado das acácias.

José Agostinho Baptista, Biografia

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14 de agosto de 2005


René Goscinny (1926-1977)



UMA AULA DE COISAS

A professora disse-nos que amanhã íamos ter uma aula especial, uma aula de coisas; cada um de nós deverá levar um objecto, uma lembrança de viagem, de preferência. Vamos falar dos objectos e vamos estudá-los, e cada um de nós vai explicar a sua origem e as recordações que estão relacionadas com eles. Será assim uma aula de coisas, uma aula de Geografia e um exercício de redacção.
— Mas o que é que temos que trazer, professora?— perguntou o Clotário.
— Eu já disse, Clotário — respondeu a professora.
— Um objecto interessante, que tenha uma história. Por exemplo, há uns anos atrás um dos meus alunos trouxe um osso de dinossauro, que o tio tinha encon­trado quando andou em escavações. Alguém sabe dizer o que é um dinossauro?
O Aniano levantou a mão, mas como desatámos todos a falar das coisas que havíamos de trazer, e com o barulho que fazia a professora a bater com a régua na secretária, não conseguimos ouvir o que aquele menino bonito da professora, o Aniano, estava a dizer.
Ao chegar a casa, disse ao Papá que tinha que levar para a escola uma coisa que fosse uma lem­brança fabulosa de alguma viagem.
— Essas aulas práticas são uma óptima ideia— disse o Papá. — Vendo as coisas vocês nunca mais se esquecem. A tua professora é muito boa, muito moderna. Mas, vamos lá a ver... O que é que podes levar?
— A professora disse que o que era mais engra­çado era um osso de dinossauro — expliquei eu.
O Papá arregalou os olhos muito admirado e perguntou :
— Um osso de dinossauro? Eis uma ideia! E onde queres que vá buscar um osso de dinossauro? Não, Nicolau, com certeza que vamos ter que nos contentar com algo mais simples.
Então, eu disse ao Papá que não queria levar coisas simples, que queria levar coisas que pusessem os meus colegas boquiabertos de espanto, e o Papá respondeu que não tinha coisas que pusessem os meus colegas boquiabertos. Então, eu disse que se era assim não valia a pena levar coisas que não surpreendessem ninguém e que até era melhor nem ir à escola amanhã, e o Papá respondeu .que começava a ficar farto e que se calhar não me deixava comer a sobremesa, e que a minha professora tinha ideias patetas; e eu dei um pontapé no sofá da sala. O Papá perguntou-me se eu queria levar uma bofetada, eu desatei a chorar, e a Mamã veio a correr da cozinha.
— O que foi, agora? — perguntou a Mamã. — Não vos posso deixar sozinhos, aos dois, que há logo problemas. Nicolau, pára de chorar! O que é que se passa?
— O que se passa é que o teu filho está furioso porque eu lhe recusei um osso de dinossauro — disse o Papá.
A Mamã olhou para nós, para o Papá e para mim, e perguntou se estavam todos a ficar malucos, naquela casa. Então o Papá explicou-lhe e a Mamã disse-me:
— Mas, então, Nicolau, não é preciso fazeres esse drama. Olha, no placard há lembranças muito inte­ressantes das nossas viagens. Por exemplo, a concha grande que comprámos em Bains-les-Mers, quando estivemos lá de férias.
— É verdade! Essa concha vale mais do que todos os ossos de dinossauro do mundo — disse o Papá.
Eu disse que não sabia se a concha ia espantar os meus amigos, mas a Mamã disse que eles iam achá-la fabulosa e que a professora me daria os parabéns. O Papá foi buscar a concha, que é muito grande e tem escrito por baixo «Recordação de Bains-les-Mers», e o Papá disse-me que eu ia espantar toda a gente se contasse as férias em Bains-les-Mers, a nossa excursão à ilha das Brumas e, até mesmo, o preço que pagámos na pensão. E se isso não espantasse os meus colegas, era porque os meus colegas eram difíceis de espantar. A Mamã riu-se e disse para irmos para a mesa, e no dia seguinte eu fui para a escola, todo orgulhoso com a minha concha embrulhada em papel castanho.
Quando cheguei à escola, já lá estavam todos os meus colegas e eles perguntaram-me o que é que eu tinha trazido.
— E vocês? — perguntei eu.
— Ah, só mostro na aula — respondeu o Godofredo, que gosta muito de fazer mistérios.
Os outros também não quiseram dizer, menos o Joaquim que nos mostrou uma faca, a mais engraçada que se possa imaginar.
— É um corta-papel que o meu tio Abdon trouxe de Toledo como presente para o meu pai. É de Espanha — explicou-nos o Joaquim.
Mas o Caldo — é o nosso vigilante, mas esse não é o seu verdadeiro nome — viu o Joaquim e con­fiscou-lhe o corta-papel, e disse que já tinha proibido milhares de vezes que trouxessem objectos perigosos para a escola.
— Mas, senhor, foi a professora que disse para eu trazer! — gritou o Joaquim.
— Ah? Foi a professora que disse para trazer essa arma para a sala? Muito bem. Não só vou confiscar este objecto como vai ainda conjugar a frase «Não devo mentir ao senhor vigilante quando ele me faz uma pergunta sobre um objecto particularmente perigoso que eu trouxe às escondidas para a escola». É inútil chorar, e os outros calem-se se não querem que eu os castigue também!
E o Caldo foi tocar a campainha, nós pusemo-nos em fila, e quando entrámos na sala o Joaquim con­tinuava a chorar.
— Começamos bem — disse a professora. — Joaquim, o que se passa?
O Joaquim explicou-lhe, a professora deu um suspiro e disse que não era lá muito boa ideia trazer uma faca para a escola, mas que ela ia resolver tudo com o senhor Dubon, é este o verdadeiro nome do Caldo.
— Bom — disse a professora —, ora vamos lá a ver o que é que trouxeram. Ponham os objectos à vossa frente, em cima das carteiras.
Então tirámos todos os objectos que tínhamos trazido: o Alceste tinha trazido uma lista de um restaurante onde tinha comido muito bem com os pais, na Bretanha; o Eudes tinha um postal da Cote d'Azur; o Aniano um livro de geografia que os pais tinham comprado na Normandia; o Clotário tinha trazido uma desculpa porque não tinha encontrado nada em casa, porque ele não tinha compreendido bem, ele pensava que tinha que trazer ossos; e o Maixent e o Rufus, esses imbecis, trouxeram cada um uma concha.
— Sim, mas eu encontrei a minha concha na praia, uma vez que salvei um homem que se estava a afogar— disse o Rufus.
— Não me faças rir — gritou o Maixent. — Primeiro, tu nem sequer sabes boiar e, depois, se encontraste a tua concha na praia, porque é que ela tem escrito por baixo: «Recordação da Plage-des-Horizons»?
— Boa! — gritei eu.
— Queres levar uma bofetada? — perguntou-me o Rufus.
— Rufus, saia! — gritou a professora. — Ficam todos de castigo na Quinta-feira. Nicolau, Maixent, estejam sossegados se não querem ser também casti­gados!
— Eu trouxe uma lembrança da Suíça — disse o Godofredo com um grande sorriso, todo orgulhoso.
— É um relógio de ouro que o meu pai comprou lá.
— Um relógio de ouro? — gritou a professora. — E o seu pai sabe que trouxe o relógio para a escola?
— Bem, não — disse o Godofredo. — Mas quando eu lhe disser que foi a senhora que me pediu para eu trazer, ele não se zanga comigo.
— Que fui eu o quê?... — gritou a professora. — Seu inconsciente! Faça o favor de guardar essa jóia na sua algibeira!
— Eu, se não levar o meu corta-papel, o meu pai vai-se zangar comigo — disse o Joaquim. — Ó Joaquim, eu já lhe disse que vou resolver esse problema — gritou a professora.
— Senhora, não consigo encontrar o relógio! Guardei-o na minha algibeira, como me disse, mas já não o encontro! — gritou o Godofredo.
— Enfim, Godofredo — disse a professora. — O relógio tem que estar aí. Já procurou no chão?
— Sim, senhora — respondeu o Godofredo. — Não está no chão.
Então a professora aproximou-se do lugar do Godofredo, olhou para todo o lado, e depois pediu-nos para procurarmos também, com cuidado para não pisarmos o relógio, e o Maixent atirou a minha concha ao chão, e então eu dei-lhe uma bofetada. A professora pôs-se a gritar, deu-nos alguns castigos, e o Godofredo disse que se não encontrássemos o relógio a professora tinha que ir falar com o pai, e o Joaquim disse que ela também tinha que ir falar com o pai dele por causa do corta-papel. Mas ficou tudo resolvido porque o relógio estava no forro do casaco do Godofredo, o Caldo devolveu o corta-papel ao Joaquim e a professora tirou os castigos.
Foi uma aula muito interessante, e a professora disse que graças às coisas que tínhamos levado, ela nunca mais se ia esquecer desta aula.
Sempé - Goscinny, As aventuras do menino Nicolau

12 de agosto de 2005

Habito um corpo — é apenas isso.
As crianças, na rua, preparam
a morte, pisam as folhas
do acaso. Quem as olhará, neste
momento parado na praça das Flores?

Benilde, ao balcão, diz que é uma flor,
talvez a última. Mas as canções,
na rádio, desmentem qualquer sorriso
e banalizam em língua portuguesa
o milagre sem voz do amor.

Não me venham dizer que existo.

Manuel de Freitas

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Miguel Torga (1907-1995)



LIVRO DE HORAS

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Miguel Torga


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11 de agosto de 2005


Emanuel Jorge Botelho (1950)



QUARTO ELOGIO DA PEDRA

O mais ínfimo rasgo lembra a estação
em que os rios eram por ti
coisa já pensada

O sumo das laranjas um braço
de criança, talvez o riso do fogo ou a idade
do frio
tão fácil a agressão da água

Emanuel Jorge Botelho

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9 de agosto de 2005


Philip Larkin(1922-1985)



If hands could free you, heart,
Where would you fly?
Far, beyond every part
Of earth this running sky
Makes desolate? Would you cross
City and hill and sea,
If hands could set you free?

I would not lift the latch;
For I could run
Through fields, pit-valleys, catch
All beauty under the sun--
Still end in loss:
I should find no bent arm, no bed
To rest my head.

Philip Larkin

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Mário Cesariny(1923-2006)
de Autografias, de Miguel Gonçalves Mendes


ARS MAGNA

Devo ter corredores por onde ninguém passe devo ter um mar próprio e olhos cintilantes
devo saber de cor o ceptro e a espada
devo estar sempre pronto para ser rei e lutar
devo ter descobertas privativas implicando viagens ao grande imprevisto
de um pássaro as ossadas de uma ilha a floresta do teu peito o animal que ina­nimado canta
devo ser Júlio César e Cleópatra a força do Dniepper e o carmim dos olhos de El-Rei D. Dinis
devo separar bem a alegria das lágrimas
fazer desaparecer e fazer que apareça
dia sim dia não


Mário Cesariny , Manual de Prestidigitação

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6 de agosto de 2005


Andy Warhol (1928), Che Guevara

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5 de agosto de 2005

But you never came with the evening —
I sat waiting in a shawl of stars
...Whenever there was a knocking at my door,
It was my own heart.
It now hangs on every doorpost,
Even on yours;
Between the ferns the fireroses expire
In the withering garland.
I dyed the heaven blackberry
With my heartblood.
But you never came with the evening —
... I stood waiting in golden shoes.


Else Lasker-Schüler
Tradução inglesa de A. Durchschlag e J. Litman-Demeestere

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4 de agosto de 2005


Percy Bysshe Shelley (1792-1822)


One sung of thee who left the tale untold,
Like the false dawns which perish in the bursting;
Like empty cups of wrought and daedal gold,
Which mock the lips with air, when they are thirsting.


Percy Bysshe Shelley, Posthumous Poems


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3 de agosto de 2005

Quando dou por mim eu sou o Alferes Cristóvão Rilke, estou em Mafra a distribuir panfletos contra a ditadura e contra a guerra, mais tarde nos Açores, de­pois em Angola, cavalgando sempre, levando o pen­dão da revolta, às vezes lembrava-me das histórias que Geraldes da Veiga, meu pai, me contava, então era Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, ou Duarte de Almeida, mesmo sem braços continuo a segurar nos dentes uma bandeira. Sim, quando me dei conta, eu estava na História, metido no verbo acontecer até ao osso, até ao avesso, até doer, eu estava na História e a História estava na vida e uma e outra estavam na es­crita, nada sabia das tertúlias nem dos cafés onde ao fim da tarde descia o anjo, sabia das picadas e das mi­nas, dos medos e dos mortos, dos nomes das mães e das namoradas escritos na terra com o próprio san­gue. Essa era também a minha letra, a minha caligra­fia, a minha escrita.
Sei bem que não podem perdoar-me: mas como perdoar também aos que continuavam a estar serenamente com tanto amigo na prisão e tanta gente na suja guerra?
E desta nem sequer me posso despedir. René Char, guerrilheiro e poeta, bem o sabia: há guerras que não acabam nunca.
Havemos de trazer sempre, ó camaradas dos cam­pos de batalha, havemos de trazer sempre dentro de nós esta que foi a nossa guerra. Havemos de trazer os vivos e os mortos, os que vieram e os que ficaram. Há mortos que ninguém pode enterrar. Há guerras que não acabam nunca. O francês bem avisou: «Afas­tai de vós o cepticismo e a resignação, e preparai a vossa alma mortal para afrontar intramuros os demó­nios gelados análogos aos génios que têm o tamanho de micróbios.»
A nossa vida foi ocupada. Dentro de mim há um Alferes Cristóvão Rilke que continua a cavalgar. Talvez a nossa alma tenha ficado mutilada. Duarte de Almeida está sem braços, mas eu vi, no mais íntimo de mim eu vi, ele continua a segurar nos dentes não sei se a caneta, se a palavra por dizer, se a bandeira esfarrapada da nossa honra.
E desta vez não me despeço, sou um alferes miliciano, há guerras que não acabam nunca, elas são a vida, elas são a escrita, afastai de vós o cepticismo e os micróbios, a página está em branco e o nosso destino é cavalgar, cavalgar, cavalgar.
Manuel Alegre, Rafael

2 de agosto de 2005


José Afonso (1929-1987)



CANÇÃO DE EMBALAR

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

José Afonso

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1 de agosto de 2005


António Maria Lisboa (1928-1953)



As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim.

António Maria Lisboa

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