31 de março de 2015



demasiado depressa o silêncio
de  braços inertes
não consigo alcançar-te
ou olhar-te sequer
nem colher a tempo tudo o que devia
(tudo o que julgo que devia)

fica sempre tanto sol por ver
deixarei as palavras presas na minha pele
num qualquer rasto
num reflexo de memória
num azul eternamente por sentir

desculpa

não sei voar.


Jorge Afonso de Almeida

11 de janeiro de 2015



UMA HISTÓRIA VULGAR

Ouvir a tua voz, outrora, era o bastante
Para sentir, enfim, justificada, a vida;
E supor que podia, a partir desse instante,
Abrir, impunemente, ao mundo, confiante,
Minh'alma enternecida.


Fitar o teu olhar, era um deslumbramento,.
Que me transfigurava e me fazia crer
Que depois de viver, na terra, esse momento,
-- Sereno, como após o extremo sacramento --,
Já podia morrer.


Premia as tuas mãos nas minhas e dizia,
Com profunda emoção: -- É só por ti que existo!
-- Como foi isto, amor? Do nosso olhar, um dia,
Caiu neve no fogo em que a minh'alma ardia...
Amor, como foi isto?!


Passas por mim, agora, e nada me insinua
Ser a tua presença o derradeiro elo
Que me prendia à vida. -- E a vida continua!
E tudo, como outrora, (o sol, o mar, a lua...)
Mesmo sem ti, é belo!


Como havemos de ter, nos outros, confiança?
Que humano sentimento a nossa fé merece?
De que servem, na vida, os ideais e a esperança,
Se o próprio Amor, -- como os brinquedos, em criança --,
Tão cedo, para nós, perde o encanto e esquece?! 


                                                       Carlos Queirós

7 de dezembro de 2014


Como um trapezista de circo

Fora demasiada audácia atacar aquela casa da rua rui Barbosa. Perto dali, na praça do Palácio, andavam muitos guardas, investigadores, soldados. Mas eles tinham sede de aventura, estavam cada vez maiores, cada vez mais atrevidos. Porém havia muita gente na casa, deram o alarme, os guardas chegaram. Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça. Barandão abriu no mundo também. Mas o Sem-Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picula com os guardas. Estes tinham se despreocupado dos outros, pensavam que já era alguma coisa pegar aquele coxo. Sem-Pernas corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam. Ele fez que ia escapulir por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira. Mas em vez de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros, se dirigiu para a praça d Palácio. Porque Sem-Pernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza. Eram homens, de pernas maiores que as suas, e além do mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo não queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que fora à polícia. Dos sonhos das suas noites más. Não o pegariam e enquanto corre este é o único pensamento que vai com ele. Os guardas vêm nos seus calcanhares. Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar, que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda. Essa será a sua vingança. Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha marcado demais. Nunca tivera uma alegria de criança.Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca conseguira amar ninguém, a não ser a este cachorro que o segue. Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o do Sem-Pernas já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens.Amava unicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico. Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado. De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher migalhas do amor que nunca tivera. Nunca, porém, o tinham amado pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste. Muita gente o tinha odiado.E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria quando o surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas. Se o levarem,o homem rirá novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que elevai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não pára. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.
A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio. O cachorro late entre as grades do muro.
                                      Jorge Amado, Capitães da Areia

17 de agosto de 2014

                                                                             Ilustração de Majalin



Knowledge


Now that I know
That passion warms little
Of flesh in the mold,
And treasure is brittle,

I’ll lie here and learn
How, over their ground,
Trees make a long shadow
And a light sound.



                             Louise Bogan 


8 de agosto de 2014

                                                                                                                                                                               cameron thorsteinn - grasss



FINISH


We are like roses that have never bothered to
bloom when we should have bloomed and
it is as if
the sun has become disgusted with
waiting 


Charles Bukowsky

8 de julho de 2013




  July 1950 – I may never be happy, but tonight I am content. Nothing more than an empty house, the warm hazy weariness from a day spent setting strawberry runners in the sun, a glass of cool sweet milk, and a shallow dish of blueberries bathed in cream. Now I know how people can live without books, without college. When one is so tired at the end of a day one must sleep, and at the next dawn there are more strawberry runners to set, and so one goes living, near the earth. At times like this I’d call myself a fool to ask for more…


Sylvia Plath, The Journals of Sylvia Plath

7 de julho de 2013





    
















    










Had I the heavens’ embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams; 
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.


                                                         William Butler Yeats

3 de junho de 2013







































ALEGREMENTE, NO AUTOCARRO

As crianças tristes passam alegres no autocarro,
cantando em altos berros e intrometendo-se com quem passa.
Vão todas ao Posto vacinar-se de graça.
A vacina é triste, as crianças são tristes,
mas passam todas, alegremente, no autocarro.

Os soldados tristes passam alegres no autocarro,
entoando as canções que cantavam nas romarias da sua terra.
Vão para o cais do embarque tomar o paquete que os levará para a guerra.
A guerra é triste, os soldados são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os operários tristes passam alegremente no autocarro,
cantando e gesticulando com a garrafa de vinho na mão.
Vão todos para a fábrica vigiar as máquinas e carregar num botão.
A fábrica é triste, os operários são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os camponeses tristes passam alegres no autocarro,
cantando e dando vivas ao longo do percurso.
Vão todos à cidade, de fato novo, aplaudir o discurso.
O discurso é triste, os camponeses são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Alegremente, no autocarro.

                                            António Gedeão, Obra Completa

25 de março de 2013






Fireflies in the Garden
Here come real stars to fill the upper skies, 
And here on earth come emulating flies, 
That though they never equal stars in size, 
(And they were never really stars at heart) 
Achieve at times a very star-like start. 
Only, of course, they can't sustain the part. 



Robert Frost






20 de outubro de 2012





Junto à água


Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.


               Manuel António Pina, Um sítio onde pousar a cabeça

13 de outubro de 2012

7 de setembro de 2012


Imagens que passais pela retina
dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
por uma fonte para nunca mais!....

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
- Estranha sombra em movimentos vãos.



Camilo Pessanha

30 de agosto de 2012

Tiago Bettencourt - Tens que largar a mão ( novo video )



Amor à vista

A mulher que não há começa em ti
Começa em ti a sempre tão ausente
A sempre tão distante e tão aqui
Tão doente da partida e tão presente.

Começa em ti a sempre incomeçada
A que por nunca ser nunca perdi
A que era amor do amor: corpo de nada.
A mulher que não há começa em ti.

Começa em ti um tempo em que ajoelho
Tempo de amar ou templo: terra e mar.
Meus olhos deslumbrados com Açores

À vista: eu que sou Gonçalo Velho
Vivendo a glória extrema de chegar
Às tuas ilhas que direi de amores.

Manuel Alegre

11 de agosto de 2012






































Song For The Last Act


Now that I have your face by heart, I look
Less at its features than its darkening frame
Where quince and melon, yellow as young flame,
Lie with quilled dahlias and the shepherd's crook.
Beyond, a garden, There, in insolent ease
The lead and marble figures watch the show
Of yet another summer loath to go
Although the scythes hang in the apple trees.

Now that I have your face by heart, I look.

Now that I have your voice by heart, I read
In the black chords upon a dulling page
Music that is not meant for music's cage,
Whose emblems mix with words that shake and bleed.
The staves are shuttled over with a stark
Unprinted silence. In a double dream
I must spell out the storm, the running stream.
The beat's too swift. The notes shift in the dark.

Now that I have your voice by heart, I read.

Now that I have your heart by heart, I see
The wharves with their great ships and architraves;
The rigging and the cargo and the slaves
On a strange beach under a broken sky.
O not departure, but a voyage done!
The bales stand on the stone; the anchor weeps
Its red rust downward, and the long vine creeps
Beside the salt herb, in the lengthening sun.

Now that I have your heart by heart, I see.
 

Louise Bogan



28 de julho de 2012



Se quiseres que eu me perca
buscarei outra ilha.
Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.



Rui Coias


21 de julho de 2012






























Não sinto culpa por não saber o nome das flores.
Foram dúvidas o que sempre tive,

e as dores não admitem nomes.
Uma vez não acreditamos já tudo ter sido dito.
Espera-se numa palavra a devolução do amor.



Paulo José Miranda, A voz que nos trai

19 de julho de 2012




Once people get under my skin,
they never find the exit.
They romp around,
fill my insides with their song and dance,
make lots of noise, using my dumbness as their cover-up.
I’m full to bursting with wise men
and fools- they’ve utterly exhausted me!
So much so that my skin’s
quite worn through
by their heels, rubbing from inside!
Give me a chance to breathe!
It’s all impossible!
I’m stuffed to the gills
with those who’ve brought me so much joy
as well as those who’ve given most offence.
What has come over me?
What can I do with this great throng
stuck in my own small heart-
police are needed to keep order there!
I’ve gone a little cracked,
for there, in that secluded shade,
I’ve dropped none of the women
and none of them’s dropped me!
It’s awkward to revive dead friendships
however much you tire yourself with trying.
The only friends I’ve lost
were on the outside,
but of those inside I’ve lost nobody.
All the people in my life I’ve quarreled with,
or made friends with,
or only shaken hands with,
have merged in a new life under the old one’s skin-
a secret conflagration without flame.
The repossession of the unpossessable
is like a waterfall that rushes upward.
Those who have died
have been born again in me,
those who have not been born as yet
cry out.
My population is too large,
beyond the strength of just one man-
but then, a person would be incomplete
if he contained no others.




Yevgeny Yevtushenko

Tradução inglesa de  Arthur Boyars e Simon Franklin 

4 de julho de 2012




Le dernier poème

J'ai rêvé tellement fort de toi,
J'ai tellement marché, tellement parlé,
Tellement aimé ton ombre,
Qu'il ne me reste plus rien de toi,
Il me reste d'être l'ombre parmi les ombres
D'être cent fois plus ombre que l'ombre
D'être l'ombre qui viendra et reviendra
dans ta vie ensoleillée.

Robert Desnos


O último poema

Tanto sonhei contigo,
andei tanto, falei tanto,
tanto amei a tua sombra,
que já nada me resta de ti.
Eu só posso ser a sombra de entre as sombras
de ser uma centena de vezes mais que a sombra
de ser a sombra que sempre virá e retorna
na tua vida cheia de sol.

Tradução encontrada aqui 



Sonhei tanto contigo,
Andei tanto, falei tanto,
Amei tanto a tua sombra,
Que não me resta mais nada de ti.
Resta-me ser a sombra entre as sombras
Ser cem vezes mais sombra que a sombra
Ser a sombra que virá e voltará 
em tua vida ensolarada.


Tradução encontrada
 aqui

1 de julho de 2012


























Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.

Reinaldo Ferreira

23 de maio de 2012



Foto de Mito

Segredo


                                    
É este o meu segredo -
fechar-me, calar-me, adormecer espantosamente.



Sem mover os dedos,
sem abrir os lábios,
irei devagar, mais tarde, à hora do sol que se
apaga,
à beira de um rio negro,
quando o coração pára.
Serei apenas um homem sem nome,
caminhando ao acaso, pelas ruas de uma cidade
que devora a sua luz.

Não quero ser mais nada.
Sou a estátua cega, sou de dentro, e por dentro
me perdi.



José Agostinho Baptista, Quatro Luas

21 de maio de 2012

Foto de Mito
















.
.
e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

                                                     Al Berto 
       

20 de maio de 2012







Decepção à regra


Sentar-me e

ver os outros passar é o

meu exercício favorito. Entretém.

Não esgota.

É gratuito. Neste meu jogo-do-não

são os outros que passam

(é aos outros que reservo a tarefa

de passar). Lavo daí os pés.

Escrevo de dentro da vida.

Pode até parecer que assim não

chego a lugar algum mas também quem

é que quer ir

ao sítio dos outros?



João Luís Barreto Guimarães

29 de abril de 2012





Gosto de coisas tristes mas contentes. Não disse isto, desculpa, o que quero dizer é que gosto de coisas felizes mas tristes. Ora, "a mesma coisa", dirás! Talvez, mas o que te quero revelar é que sinto que sempre gostei de chorar quando estou alegre. A tristeza mais bela de todas é a felicidade com lágrimas nos olhos.Agora sim, exactamente isto. O contrário aqui não é verdade. As coisas tristes são realmente tristes, não havendo para mim qualquer beleza nelas. Ontem chorei no concerto dos Goldfrapp e pensei em ti. Não me perguntes porquê, porque não sei. Nem tudo tem que ter uma resposta. Chorei, admito, como um rapazinho que não aguenta a emoção de ver a mãe chegar de uma viagem muito longa. 

Há muito tempo, durante a minha infãncia, o meu pai, fazia-me algo de muito parecido quando, religiosamente, chegava a casa por volta das seis e meia da tarde. Lembro-me bem, como se fosse hoje, que a minha mãe, conhecedora como ninguém da silhueta dele me dizia "vem ali em cima o teu pai" e eu, não duvidando nunca desta sensibilidade, corria de braços abertos a rua inteira para encontrar o regaço do meu pai, que me dava dois beijinhos e me trazia de volta, como recompensa, às cavalitas. Tinha seis anos, talvez menos, talvez mais, não sei, mas o que guardo daí era o meu pai parado no meio da rua, a rir-se, de braços abertos com se fosse um deus, orgulhoso e atento aos carros que passavam, à minha espera, para me atirar ao ar como só um pai sabe fazer. 

E depois daí, do alto dos seus ombros, sentia-me maior do que tudo à minha volta, e acenava à minha mãe que, com um lenço branco e humor refinado, gritava “ai, que rico filhinho, ai que bela prendinha!”

Se um dia for pai, gostava de ter um filho que fizesse o mesmo por mim, que corresse para mim como eu corria para o meu, que me amasse tanto como ele amava  (e ama, presumo) e me esperasse religiosamente como eu o fazia, todos os dias, esperando o sábio sinal da minha mãe que me dizia sempre, todos os dias antes de partir, "vai pelo passeio, pelo carreirinho (assim é que era), tem cuidado com os carros". 

Ainda hoje, com 26 anos, perdi a esperança de fazer com que a minha mãe e o meu pai deixassem de fazer os mesmos pedidos, as mesmas recomendações, os mesmos avisos.Invariavelmente, “não chegues tarde a casa”, “fecha as portas do carro”, “telefona quando chegares”. Não há maneira de os fazer desistir, da mesma forma, que se torna complicado desistir de alguém, de fazer as mesmas perguntas, de clamar idênticos pedidos. Não há outra forma, a não ser habituarmo-nos a isto, mesmo que nos pareça igual a sempre, mas desde que nos saiba tão bem como das primeiras vezes. 

E sendo assim, não resisto a uma estranha analogia entre tudo isto de que te falo e a paixão que sinto por ti. 



A minha paixão por ti é eu ser orfão, viver num reformatório e esperar pela visita de alguém que me tire dali. Calma, ainda não é isto. A minha paixão por ti é estar numa fila imensa com meninos mais bonitos que eu, bem melhor tratados, mas mesmo assim, fazendo tudo para que me escolhas a mim e me leves para fora. Porque é a ti que eu quero e a mais ninguém. E mesmo quieto, estou aos saltos cá dentro quando te vejo, mesmo mudo, estou a gritar para que me leves daqui, mesmo aqui, entre todos, faço força com os olhos para que fiquem maiores à tua passagem. E mesmo que não me leves desta vez, fico à espera de outra, e mais outra, até ao dia, em que não sobra mais ninguém, em que só estou eu ali, sozinho, sem mais meninos bonitos, sem mais nada, quase nu, com uma roupa velha e suja, à espera que me agarres. E se, mesmo assim, não o fizeres,  quero que saibas que dali não saio sem ti, mesmo que ali fique, para sempre, toda a vida, na certeza de que não me vendi a outra pessoa, na esperança de que tu voltes. Porque é o teu regresso que me importa, porque é esse bocadinho em que te vejo que me faz ficar de lágrimas nos olhos mas contente cá por dentro. Porque é mesmo isto, é mesmo isto que eu penso, a mais bela das tristezas é a felicidade com lágrimas nos olhos.


                    Fernando Alvim, No dia em que fugimos tu não estavas em casa