29 de setembro de 2005


Luís Miguel Nava (1957-1995)


Sem outro intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava

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28 de setembro de 2005


Eduardo Bettencourt Pinto (1954)

Poema no guardanapo

Nadas na sombra de uma grande ausência.
Cobrem-te os vidros do espanto,
fragmentos de ardidos instantes,
o peso da água incendiada.
Imaginas então o ressoar
de uns pés infantis
na fotografia mais distante
do teu nome.Sabes então que só na terra
onde escondes o coração
correrás por entre as palmeiras
e o eco dos primeiros rios.

Eduardo Bettencourt Pinto

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25 de setembro de 2005


valter hugo mãe (1971)



agora deixo-te morrer, vou
embora, porque o livro
oblitera as palavras e as
que recuso sustentam-me
amanhã, quando deitar o
sono na areia, o sol a
pesar-me o corpo e tu, todo
o tamanho do mar, calado,
apenas mais um
morto

valter hugo mãe, três minutos antes de a maré encher

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7 de setembro de 2005


Camilo Pessanha(1867-1926)

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine

Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.


Camilo Pessanha, Clepsidra

6 de setembro de 2005

Victoria Sheridan, «Pool with ladder»



Sete anos me aguardam de incertezas, O gato gordo,
sobre o muro, é apenas uma figura transitória. Tu vais
ficando, um livro abandonado no melhor
do enredo, aberto para sempre sobre a cama. Eu

sento-me à janela onde houve uma vez uma figueira.
E fico. Aguardo provavelmente a tua voz no silêncio
demorado dos quartos ao entardecer. E também adormeço,
se não for a memória do ruído ensurdecedor dos
espelhos, rebentando pela casa em mil pequenos cacos
incertos. Sete anos

para reler uma história demasiado conhecida ou
folhear um livro branco até ao fim. O gato já
desapareceu. Digo que escolhe, como tu, outra
cama para desafiar a lua. Eu não, eu eu fico.

Maria do Rosário Pedreira, A Casa e o Cheiro dos Livros


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5 de setembro de 2005


Pedro da Silveira (1922-2003)


FINDA

Não ser mais que um cisco de terra: mas terra viva,
poeira
e aragem.
Ter um casaco feito de estrelas e sóis vagabundos
e um pouco de dia nascido dentro do coração.

Pedro da Silveira


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4 de setembro de 2005


José Luís Peixoto (1974)

Não vás. E não fui. Ainda que todo o dia, toda a vida, tivesse esperado aquele instante, único entre todos os instantes, ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira pequena daquele instante, não fui. Não vás. Ainda que se tivesse levantado uma cegonha a planar como um abraço que nunca demos, mas que julgámos possível, ainda que todo eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por mim, hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os mais sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornas­se um lugar penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdi­çados antes do tempo, durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória má do seu tempo, no tédio de não ter e de não esperar nada. Não vás. E não fui. (...) Tenho de levantar-me desta cama. Lentamente, fecho as pálpebras a este sol que olho de frente, este sol que entra por mim não para me lavar de penumbra, mas para me sufocar. Lentamente, levanto as pálpebras, e nas trevas deste quarto vejo surgir este corpo que, parado, não me parece meu. Aos poucos começo a tomar posse dele: primeiro, os braços, levanto-os; depois as pernas, sento-me na cama. Sou de novo eu. (...) Abro e fecho a porta da rua. A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço negro que as separa.

José Luís Peixoto, Nenhum Olhar, Lisboa, Temas e Debates, 2002
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1 de setembro de 2005


António Lobo Antunes (1942)


E PRONTO

Agora não. Talvez daqui a uma hora, amanhã, depois de amanhã, mais tarde, mas agora não. Agora aguen­ta-te, finge que és forte, sorri ou, pelo menos, puxa os cantos da boca para cima: se mantiveres os olhos se­cos vão pensar que é um sorriso. Então basta pedir
- Com licença
e saíres. Quantos metros até à porta? Seis? Sete? Continua com os cantos da boca puxados para cima, caminha de lado se não tens espaço, vai pedindo
- Com licença
toca ao de leve costas, ombros
- Com licença
contorna esse homem gordo que te não ouviu
os homens gordos nunca ouvem
quatro metros, três metros, mais costas, mais ombros, a música mais intensa porque um amplificador mesmo em ci­ma de ti, já nem vês o bar, já nem vês a pista, vês cabeças, ca­ras, nenhum braço que te acene, te chame, cabeças que não tor­narás a ver, caras que nunca viste, o homem gordo ainda, a fi­car lá para trás, distante, duas costas, dois ombros e a porta, uma costas, uns ombros e a porta, nenhumas costas, nenhum ombros, a porta, ou seja a primeira porta, o bengaleiro a seguir, entrega a senha à empregada, recebe o casaco, agradece o ca­saco aumentando o sorriso
não soltes os cantos da boca
devias ter entregue uma moeda com a senha
entregaste?
a segunda porta, a rua, as pessoas que esperam para entrar e te olham com inveja, o segurança de braços afastados a impedir uma rapariga
- Um momento
pisca um olho ao segurança
pisca-se sempre um olho amigo ao segurança
cumprimenta-o
- Até amanhã
ou assim, tanto faz, não se entende com a música, aceita a palmadinha do segurança que afinal te conhece
- Tão cedo?
e as pessoas que esperam para entrar não somente com inveja, com respeito, hesitando quem serás, quem não se­rás, uma delas
a esperta
para o segurança, a apontar-te
- Sou prima desta tipa
o segurança a aumentar no interior da camisa
- Disse um momento não disse?
já quase ninguém, já ninguém, tu sozinha na esquina, procura as chaves do carro na mala entre os lenços de papel e os óculos escuros, deixaste o automóvel ali em baixo, na praceta, não esta travessa, a seguinte, a seguinte também não, havia um chafariz por aqui, depois da padaria fechada talvez
é uma padaria
que estes bairros antigos parecem-se todos, acanha­dos, estreitos, os caixotes do lixo a atravancarem o passeio pa­ra além do que os moradores deitam fora, uma cadeira, um fo­gão, um armário amolgado, aí está o chafariz no fim de contas não à esquerda, à direita, com uma luz municipal em cima, a coroa da monarquia, uma data na pedra
1845
nenhuma bica a deitar água, a praceta e o seu qua­drado de relva, o banco de madeira a que faltam duas ripas, um jipe e passando o jipe o teu carro, quando chegaste en­tre um jipe e uma furgoneta e agora entre um jipe e outro ji­pe, os dois tão unidos ao automóvel que vais gastar um sé­culo a torcer o volante, a avançar, a recuar, a tirá-lo de mo­do que bates devagarinho neste, bates devagarinho naquele, talvez desta vez
não, um avanço e um recuo ainda
um drogado fraternal a auxiliar a manobra, vasculhar na carteira
lenços de papel, óculos escuros, a agenda com a pá­gina do telefone do dentista solta
em busca de uma moeda para o drogado
a moeda que devias ter dado no bengaleiro
e o drogado a olhar-te sem olhar a moeda de forma que tranca o carro depressa, o estalido das portas e o drogado a troçar-te mas com os olhos sérios, a espalmar o nariz no vi­dro, a diminuir, inofensivo, à medida que avanças, becos, traves­sas, sentidos proibidos, onde se apanha a avenida, onde raio se apanhará a avenida, novos sentidos proibidos, uma camioneta de lavar a rua a impedir-te um caminho que pensas conhecer, uma seta a obrigar-te a contornar uma estátua que não é bem uma estátua, é metade de um homem a emergir de um calhau e nisto, sem que dês conta, o rio, armazéns, contentores, uma espécie de guarita e perto da guarita os pescadores da noite jo­gando linhas ao Tejo, o cheiro do gasóleo, o cheiro da vazante, percebes a água por reflexos, escamas, não necessitas de sorrir nem de puxar os cantos da boca, inclina um bocadinho o ban­co, acomoda-te melhor, liga o rádio, experimenta um cigarro e a página do telefone do dentista a surgir da carteira juntamen­te com o maço
não apenas o dentista, Diná, David, Duarte
um papelinho amarelo colado por baixo do telefone a lembrar-te
quarta-feira onze
a consulta, guarda a página, se não achas o isqueiro tens o isqueiro do carro, empurra-se e daqui a nada salta com a ponta vermelha, não gostas do isqueiro do carro porque o ta­baco queimado fica preso aos aneizinhos em brasa, um dos pes­cadores procura isco na alcofa, os morros de Almada, uma paz tão grande não é, um sossego lento não é, uma calma não é, a tristeza a dissolver-se, fecha os olhos, descansa, e vais ver que daqui a nada já não te lembras que acabámos, daqui a nada já nem te lembras de mim.

António Lobo Antunes, Visão, 23 /05/02
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