29 de setembro de 2004


Miguel de Unamuno(1864-1931)
(retrato de Ramón Casas)

(…)
«Esperar o amor! Só o espera quem o tem já dentro de si! Cremos cingir a sua sombra, quando ele, o amor, invisível aos nossos olhos, nos estreita e nos oprime. Quando julgamos que morreu em nós, é porque já tínhamos morrido dentro dele, pois só se ama deveras depois que o coração do amante se misturou, em almofariz de angústia, com o coração do ente amado. E o amor - paixão - partilhada, é paixão, dor comum. Dele vivemos, sem dele darmos conta, como não nos damos conta de vivermos do ar, até ao momento de asfixia angustiosa. Esperar o amor! Só espera o amor, só por ele chama, aquele que o possui já em si, o que do seu sangue vive, mesmo sem saber.

É a água subterrânea a que aviva a secura. Sentimos, por vezes, uma sede abrasadora, tal qual a do campo deserto que se abre em sulcos de secura, ao passo que voam à solta, à superfície, as folhas levadas pelo vento suão; e, todavia, nas profundezas desse mesmo campo, sob as várzeas de sua verdura morta, corre, sobre a Tocha que a sustém, o caudal da água vivificadora. E é o rumor dessa água profunda o que se funde ao ruído das folhas secas, e vem numa altura em que a terra ressequida se escancara - e, à superfície dela, irrompem, como manancial, as águas adormecidas. Assim é o Amor».

«É o egotismo, porém, minhas irmãs e meus irmãos, é o triste e orgulhoso amor-próprio que nos cega, a fim de não enxergarmos o amor que nos cinge e envolve, para não o sentir. Queremos tirar-lhe algo, não nos entregarmos de todo a ele - e o amor deseja-nos e reclama-nos inteiros. Queremos que ele seja nosso, que se submeta aos nossos insensatos desejos, na busca do nosso esplendor pessoal e Ele, o Amor, o Amor incarnado e humanizado, exige que a ele pertençamos, inteiramente - e só a ele. E quando nos submetemos?"

Miguel de Unamuno, "Uma História de Amor"

28 de setembro de 2004

Se soubesse que a vida traz o vento da raiva contida,
a luz das madrugadas sem sol,
ou que o inferno arde na morte lenta dos dias sem horas,
se soubesse que música se ouve nas lembranças do que nunca aconteceu,
na tarde que arrefece devagar, sem sabermos,
teria tentado ouvir as frases em branco,
a melodia de inverno dos olhos que não brilham,
teria embarcado nos abraços sem corpo de tantas palavras.
COMPREENDER A MORTE
Contei a Morrie que já me sentia na fase mais descendente da vida, por muito desesperadamente que tentasse sentir-me ao de cima. (...)
Morrie via o envelhecimento numa perspectiva melhor.
- Toda esta ênfase na juventude não me convence –disse ele. –Escuta, eu sei a infelicidade que um jovem pode sentir, portanto não me digas que é assim tão bom. Todos estes miúdos que vêm até mim com as suas lutas, os seus conflitos, os seus sentimentos de desadaptação, o seu sentido de que a vida é miserável, tão má que se querem suicidar... (...)
Nunca tiveste medo de envelhecer, perguntei eu?
-Mitch, eu abraço o envelhecer.
Abraças?
- É muito simples. À medida que cresces, aprendes mais. Se ficasses pelos vinte e dois anos, serias sempre tão ignorante como eras aos vinte e dois anos. Sabes, envelhecer não é só decadência. É crescimento. É mais do que o negativo do que vais morrer, é também o positivo de que vais compreender que vais morrer, e que vives uma vida melhor por causa disso.
Sim, mas se envelhecer é tão valioso, porque é que as pessoas dizem sempre “Ah, se fosse novo outra vez”. Nunca ouves ninguém dizer “Gostava de ter sessenta e cinco anos”.
Sorriu.
- Sabes o que isso reflecte? Vidas insatisfeitas. Vidas incompletas. Vidas que não encontraram sentido. Porque se encontrares sentido na vida, não desejas voltar atrás. Queres ir para a frente. Queres ver mais, fazer mais. Estás mortinho por chegar aos sessenta e cinco.
“Ouve, tens de saber uma coisa. Todos os jovens têm de saber uma coisa. Se estiveres sempre a batalhar contra o envelhecimento, vais ser sempre infeliz, porque isso vai acontecer de qualquer maneira.
“E, Mitch?”
Baixou a voz..
- O facto é que vais mesmo acabar por morrer.

Mitch Albom, As Terças com Morrie (excerto)

26 de setembro de 2004


Luís FernandoVeríssimo(n.1936)


MEIO POETA

No dia em que Mônica e Otávio voltaram da lua-de-mel, Mônica chegou na casa dos pais e se trancou no quarto com a mãe. Precisava contar uma coisa e não queria que o pai ouvisse.
- O Otávio é poeta, mamãe.
A mãe levou as mãos à boca.
- Minha Virgem Santíssima!
Depois perguntou:
- Como você descobriu?
- Na primeira noite. A lua estava cheia. Ele fez umas frases sobre a luz da lua no meu corpo.
- Mas você tem certeza que era poesia? Rimava?
- Não rimava, mas era poesia. Ele mesmo disse, mamãe! Eu perguntei “O que é isso?” e ele respondeu “Eu sou meio poeta”.
- Bem que seu pai desconfiou...
- Você acha que devemos contar ao papai?
- É claro. E agora.
O pai disse “Eu sabia” e determinou que chamassem Otávio para se explicar. Mônica disse que Otávio ficara de buscá-la ali depois do trabalho. Os três esperaram a chegada de Otávio. A mãe, temendo algum excesso do pai, tentou amenizar a situação:
- Ele disse que é só “meio” poeta...
O pai não disse nada. Quando soou a campainha da porta, mandou que a filha fosse para o quarto. Otávio cumprimentou os sogros efusivamente - era a primeira vez que os via depois da festa do casamento - , mas logo percebeu a frieza deles.
- O que foi? - perguntou.
- Você não nos contou que era poeta - disse o pai.
- Mas eu não...
- Não adianta negar. A Mônica nos contou. Você pensou que ela não nos contaria?
- Mas foi só um...
- Sei. Um poeminha. É assim que começa. Um versinho hoje, um versinho amanhã. Não demora você estará fazendo poemas épicos, odes a qualquer coisa, diariamente. Já vi acontecer. Acabará abandonando o emprego, roubando a mesada da minha filha, para sustentar o hábito.
- Mas eu...
- Você vai dizer que pode parar quando quiser. É o que todos dizem.
- Meu filho - interveio a mãe, aflita -, você não se dá conta do mal que a poesia pode fazer? Há quanto tempo você...
- Não interessa - interrompeu o pai - O que ele fez antes não nos interessa. Mas agora está casado. Tem responsabilidades, tem que trabalhar para manter a família. Está num ramo competitivo, não pode facilitar. Eu sei, eu sei. A poesia é tentadora. Eu mesmo, na mocidade, fiz meus sonetos...
- Eurico!
- Nunca lhe contei isto, Marta, mas fiz. Felizmente tive um pai que me orientou e parei a tempo. A Mônica foi criada sem qualquer poesia. Qualquer sugestão de métrica, nós reprimíamos. E sempre a alertamos contra os poetas.
- Será - sugeriu a mãe - que não existe um programa de reabilitação? Alguém com quem você possa se aconselhar...
Mais uma vez o pai a interrompeu.
- A decisão tem que ser sua, Otávio. E tem que ser agora. Você compreende que não podemos deixar a Mônica sair desta casa, onde sempre teve toda a segurança, para viver com um poeta. Não nos dias de hoje. Faça a sua escolha. A Mônica, uma família, uma vida normal... ou a poesia.
Otávio jurou que abandonaria a poesia para sempre, a Mônica foi chamada, os dois foram para o apartamento novo, Mônica um pouco desconfiada. Otávio ouvindo a advertência, na saída: “Olhe lá, hein?” Hoje, sempre que fala com Mônica pelo telefone, a mãe pergunta:
- E o Otávio?
- Está bem, mamãe.
- Nunca mais...
- Nunca.
Às vezes, quando a família está toda reunida, Otávio diz umas coisas que provocam troca de olhares entre os outros e a suspeita de uma recaída. Depois a Mônica assegura que aquilo não é poesia, é só o jeito dele. Mas seu Eurico e dona Marta vivem preocupados com a filha. Nas noites de lua cheia, então, dona Marta nem consegue dormir direito.
Luís Fernando Veríssimo, Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 25/4/93

25 de setembro de 2004


Mário de Carvalho(n.1944)

"Eu vejo raramente um amigo que é dado à quietação e sofrido de enfados. Trabalha nunca percebi em quê, dizem que negócios sedentários e rendíveis. Ele uma vez tentou explicar-me, mas aborreceu-se a meio, e eu também. Deixámos o bocejo para as calendas. O que nele é mais irritante é aquilo que a ciência popular designa por «saúde mental», défice de atribulações de alma. Volta e meia está casado, ou amigado, volta e meia, não. Tenho de usar de cautela para não lhe trocar o nome das companheiras, mais por elas que por ele. Tem filhos dispersos por idades, em lugares distantes, vai pagando pensões e almoços confirmativos de paternidade, pelas festas apropriadas. Não é feliz, nem infeliz, antes pelo contrário. Conhecemo-nos em miúdos no liceu e encontramo-nos quando calha. Sabe responder a um silêncio com outro silêncio, qualidade sem preço. É possível ler tranquilamente os semanários a seu lado. Numa destas Primaveras chamou-me da sua casa de praia, arribada nuns penhascos oceânicos, ao norte de Santa Rita. Detesto meter-me à estrada, mas ele insistiu: Tinha uma coisa para me mostrar. Valia a pena? Sim."

Mário de Carvalho, Contos Vagabundos


http://www.terravista.pt/ilhadomel/4201/paginas/mario_carvalho.htm
http://www.instituto-camoes.pt/bases/100livros/mariocarvalho.htm

24 de setembro de 2004


F.Scott Fitzgerald(1896-1940)

"Either you think, or else others have to think for you and take power from you, pervert and discipline your natural tastes, civilize and sterilize you."

F.Scott Fitzgerald

http://www.fitzgeraldsociety.org/teaching/index.html
http://www.sc.edu/fitzgerald/

22 de setembro de 2004

Árvore, árvore. Um dia serei árvore.
Com a maternal cumplicidade do verão.
Que pombos torcazes
anunciam.

Um dia abandonarei as mãos
ao barro ainda quente do silêncio,
subirei pelo céu,
às árvores são consentidas coisas assim.

Habitarei então o olhar nu,
fatigado do corpo, esse deserto
repetido nas águas,
enquanto a bruma é sobre as folhas

que pousa as mãos molhadas.
E o lume.

Eugénio de Andrade, Com o Sol em cada Sílaba

.

21 de setembro de 2004


H.G.Wells (1866-1946)

"A time will come when a politician who has willfully made war and promoted international dissension will be as sure of the dock and much surer of the noose than a private homicide. It is not reasonable that those who gamble with men's lives should not stake their own."

H.G.Wells


http://www.readbookonline.net/books/Wells/73/
http://www.online-literature.com/wellshg/

20 de setembro de 2004


Stevie Smith (1902-1971)


Not Waving But Drowning

Nobody heard him, the dead man,
But still he lay moaning:
I was much farther out than you thought
And not waving but drowning.

Poor chap, he always loved larking
And now he's dead
It must have been too cold for him his heart gave way,
They said.

Oh, no no no, it was too cold always
(Still the dead one lay moaning)
I was much too far out all my life
And not waving but drowning.

Stevie Smith, Not Waving But Drowning

http://www.bbc.co.uk/bbcfour/audiointerviews/profilepages/smiths2.shtml

http://oldpoetry.com/authors/Stevie%20Smith

19 de setembro de 2004


William Golding(1911-1996)

"Consider a man riding a bicycle. Whoever he is, we can say three things about him. We know he got on the bicycle and started to move. We know that at some point he will stop and get off. Most important of all, we know that if at any point between the beginning and the end of his journey he stops moving and does not get off the bicycle he will fall off it. That is a metaphor for the journey through life of any living thing, and I think of any society of living things."

William Golding

http://www.william-golding.co.uk/
http://nobelprize.org/literature/laureates/1983/golding-lecture.html


16 de setembro de 2004

Poema do Silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais,ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
~Meu Deus em que não creio!
e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.


José Régio

15 de setembro de 2004

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira,
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.

David Mourão-Ferreira


.

14 de setembro de 2004

Quando o silêncio se faz voz


Às vezes,ouves-te, subitamente:
Uma estranha melodia
De ecos, de sombras,
Que te rouba a voz,
Que te rouba a ti.
Talvez seja só o mar
Que leva o que não foste sendo,
Que lava pegadas por dar.
Devias repetir, repetir-te,
Até entender, até entenderes,
até não fazer sentido,
até ensurdeceres,
ou calares finalmente o silêncio.
Devias gritar o sangue,
Deixar a alma escoar-se até à morte,
Até o corpo enrouquecer,
E abrir os olhos, devagar,
E viver em ti.
Dias úteis
às vezes pretextos fúteis
pra encontrar felicidades
no percurso de um só dia

Dias úteis
são tão frágeis as verdades
que se rompem com a aurora
quem as não remendaria?

Dias úteis
mesmo se a dor nos fizer frente
a alegria é de repente
transparente
quem a não receberia?

Mesmo por pretextos fúteis
a alegria é o que nos torna
os dias úteis

Dias raros
aqueles que por amparos
do bom senso e da imprudencia
fazem os prazeres do dia

Dias raros
como os ares, rarefeitos
amores mais do que perfeitos
quem os recomendaria?

Dias raros
em que os mais dados às rotinas
ouvem sinos, seguem sinas
cristalinas
quem as não perseguiria?

Por motivos talvez claros
o prazer é o que nos torna
os dias raros

Por pretextos talvez fúteis
a alegria é que nos torna
os dias úteis

Por motivos talvez claros
o prazer é o que nos torna
os dias raros

Por pretextos talvez fúteis
por motivos talvez claros

Sérgio Godinho, Domingo no Mundo

12 de setembro de 2004

SLUMBER SONG


Some day, if I should ever lose you,
will you be able then to go to sleep
without me softly whispering above you
like night air stirring in the linden tree?

Without my waking here and watching
and saying words as tender as eyelids
that come to rest weightlessly upon your breast,
upon your sleeping limbs, upon your lips?

Without my touching you and leaving you
alone with what is yours, like a summer garden
that is overflowing with masses
of melissa and star-anise?

Rainer Maria Rilke (Translated by Albert Ernest Flemming)

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11 de setembro de 2004

QUE HÁ-DE SER DE NÓS

Já viajámos de ilhas em ilhas
já mordemos fruta ao relento
repartindo esperanças e mágoas
por tudo o que é vento

Já ansiámos corpos ausentes
como um rio anseia p´la foz
já fizemos tanto e tão pouco
que há-de ser de nós?

Que há-de ser do mais longo beijo
que nos fez trocar de morada
dissipar-se-á como tudo em nada?

Que há-de ser, só nós o sabemos
pondo o fogo e a chuva na voz
repartindo ao vento pedaços
que hão-de ser de nós

Já avivámos brasas molhadas
no caudal da lágrima vã
e flutuando, a lua nos trouxe
à luz da manhã

Reencontrámos lágrima e riso
demos tempo ao tempo veloz
já fizemos tanto e tão pouco
que há-de ser de nós

Que há-de ser da mais longa carta
que se abriu, peito alvoroçado
devolver-se-á: «endereço errado?»

Que há-de ser, só nós o sabemos
pondo o fogo e a chuva na voz
repartindo ao vento pedaços
que hão-de ser de nós

Já enchemos praças e ruas
já invocámos dias mais justos
e as estátuas foram de carne
e de vidro os bustos

Já cantámos tantos presságios
pondo o fogo e a chuva na voz
já fizemos tanto e tão pouco
que há-de ser de nós?

Que há-de ser da longa batalha
que nos fez partir à aventura?
que será, que foi
quanto é, quanto dura?

Que há-de ser, só nós o sabemos
pondo o fogo e a chuva na voz
repartindo ao vento pedaços
que hão-de ser de nós

Sérgio Godinho, Coincidências

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CHEGAR AQUI

É claro que tudo isto é uma chatice
Estávamos habituados a acreditar em qualquer coisa
Fosse a Terra Prometida O Dia de Amanhã ou A Esperança
Assim chamada para ser sabe-se lá o quê
Brasil ou África talvez Europa
Havia uma fé uma fezada uma saída
Havia aquela luz de que falou Jorge de Sema
Esperança era o seu nome
Uma pequena luz Não isto

A aventura partiu para outros lados
A retórica aumenta
A vida baixa

Não há lugar para a beleza
Não há tempo
Eis a cidade com seu rosto desolado
Degradação é o nome destes dias
Amigos que desgraça etc. António Nobre
Ou Camilo Pessanha Eu vi a luz
Em um país perdido
Mas agora nem essa é só chatice
E perdição

E navegámos tanto tempo
São Gabriel Santa Maria Frol de la Mar
Não há dúvidas temos um passado
Talvez demais
Talvez tanto que não deixa lugar para o futuro

Mas fomos pelo mar chegámos longe

E agora Portugal o que será de ti
Se não formos capazes de chegar
Aqui

Manuel Alegre, Chegar Aqui

10 de setembro de 2004

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvorese
nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade

José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas
Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir na chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante

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9 de setembro de 2004

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar e andar,
Depois de ficar e ir,
Hei-de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Fernando Pessoa, Poesias Inéditas

8 de setembro de 2004

Hoje apetece-me sentir com as tuas palavras
Para não ser bem eu mas o que vai de mim a ti
Ainda que nunca saibam a ti
E que é só o que deve existir

Nem sempre consigo ouvir o que nunca dizes é certo
Dentro de mim tropeço-me
Nunca sinto o que digo
Nem sei se sei sentir
As minhas palavras existem-me demasiado
São o que és.

Ana França
Não há enganos entre nós, só as coincidências
explicam os fantasmas que nos unem.
Ao melhor amigo não conto o que me encanta
e transforma. Entre nós, que somos tristes e
leves, as longas baías de inverno têm pouco a
dizer. De tudo isso sabemos um pouco,
quase nada, enumeramos razões
e receios, os princípios, nisso esgotamos
a brancura, alguma coisa, algum tempo.

Não há enganos. Não há nada mais,
o futuro.

Francisco José Viegas

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7 de setembro de 2004

Estou sempre aqui.
E vou sempre a lado algum.
Pudesse um lugar que não eu existir.
Só o tempo me leva
Como se uma evasão do que fui sendo.
E chego sempre aqui,
Aqui,mesmo sem chegar.
E com a partida, a negação de mim.


A. M. F.