25 de novembro de 2007

 caricatura de Bordalo Pinheiro
Eça de Queirós (1845-1900)



Foi uma dessas manhãs que preguiçando assim no sofá com a Revista dos Dois Mundos na mão, ele ouviu um rumor na antecâmara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:
- Sua Alteza Real está visível?
- Oh!, Ega! - gritou Carlos, dando um salto do sofá.
E caíram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.
- Quando chegaste tu?
- Esta manhã. Caramba! - exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos ombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o enfim no olho. - Caramba! Tu vens esplêndido desses Londres, dessas civilizações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não há nada como a barba toda!
Carlos ria, abraçando-o outra vez.
- E de onde vens tu, de Celorico?
- Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O fígado, o baço, uma infinidade de vísceras comprometidas. Enfim, doze anos de vinhos e águas-ardentes...
Depois falaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligência, às várzeas de Celorico, o adeus de eternidade.
- Imagina tu, Carlos, amigo, a história deliciosa que me sucede com minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caiu! Fiquei na quinta, fazendo epigramas ao padre Serafim e a toda a corte do céu. Chega Julho, e aparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diftéricas... A mamã salta imediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minha irmã concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que não gosta de me ver na quinta, diz que é possível que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quase de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruíne, mas que não esteja ali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...
- E a epidemia...
- Desapareceu logo- disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.
Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de casimira; e o cabelo que ele trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dândi, vistoso, paramentado, artificial e com pó de arroz - e Carlos deixou enfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos lábios:
- Ega, que extraordinário casaco!
Por aquele sol macio e morno de um fim de outono português, o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça, uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tísico uma rica e fofa espessura de peles de marta.
- É uma boa peliça, hem? - disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exibindo a opulência do forro. - Mandei-a vir pelo Strauss... Benefícios da epidemia.
- Como podes tu suportar isso?
- É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.
Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete.
- E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto esplêndido!
Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das obras do laboratório... (...)
O Ega, repoltreado, com aquele ar de tranquila e sólida felicidade que Carlos já notara, disse puxando lentamente os punhos:
- É necessário reorganizar essa vida. Precisamos arranjar um cenáculo, uma boemiazinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com literatura... (...)
Desembaraçou-se da opulenta peliça, e apareceu em peitilho de camisa.
- O quê! Tu não trazias nada por baixo? - exclamou Carlos. - Nem colete?
- Não; então não a podia aguentar... Isto é para o efeito moral, para impressionar o indígena... Mas, não há negá-lo, é pesada!
E imediatamente voltou à sua ideia: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organizava-se um Cenáculo, um Decameron de arte e diletantismo, rapazes e mulheres - três ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das filosofias...
Carlos ria-se desta ideia do Ega. Três mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenáculo! Lamentável ilusão de um homem de Celorico! (...)
- Enfim, exclamou o Ega, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?
Desembaraçado da majestade que lhe dava a peliça o antigo Ega reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se também, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambeta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharam sobre o país...
Mas o relógio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Ega saltou sobre a peliça, sepultou-se nela, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, saiu com um arzinho de luxo e de aventura.
Eça de Queirós, Os Maias

7 de novembro de 2007


Cecília Meireles (1901-1964)





Encomenda


Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê - como esta:
Em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.


Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.


Cecília Meireles

4 de novembro de 2007



Sonnet XIV

If thou must love me, let it be for nought
Except for love's sake only. Do not say
'I love her for her smile-her look-her way
Of speaking gently,-for a trick of thought


That falls in well with mine, and certes brought
A sense of pleasant ease on such a day'-
For these things in themselves, Beloved, may
Be changed, or change for thee,-and love, so wrought,


May be unwrought so. Neither love me for
Thine own dear pity's wiping my cheeks dry,-
A creature might forget to weep, who bore


Thy comfort long, and lose thy love thereby!
But love me for love's sake, that evermore
Thou mayst love on, through love's eternity.


Elizabeth Barret Browning, Sonnets from the Portuguese
.

7 de outubro de 2007

Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


Maria do Rosário Pedreira

29 de setembro de 2007


Miguel de Unamuno (1864-1936)



Leer, leer, leer, vivir la vida
que otros soñaron.
Leer, leer, leer, el alma olvida
las cosas que pasaron.
Se quedan las que quedan, las ficciones,
las flores de la pluma,
las solas, las humanas creaciones,
el poso de la espuma.
Leer, leer, leer; ¿seré lectura
mañana también yo?
¿Seré mi creador, mi criatura,
seré lo que pasó?

Miguel de Unamuno

24 de setembro de 2007


Antonio Tabucchi (1943)





A noite está quente, a noite é longa, a noite é magnífica para ouvir histórias, disse o homem que veio sentar-se ao meu lado no muro do pedestal da estátua de D. José. Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento, eu olhei para o meu interlocutor, era um vagabundo magro com uns sapatos de ténis e uma camisola amarela, tinha a barba comprida e era quase careca, devia ter a minha idade ou pouco mais, ele olhou para mim e levantou o braço num gesto teatral. Esta é a lua dos poetas, disse, dos poetas e dos contistas, esta é uma noite ideal para ouvir histórias, e para as contar também, não quer ouvir uma história? E porque é que teria de ouvir uma história?, disse eu, não vejo a razão. A razão é simples, respondeu ele, porque é uma noite de lua cheia e porque você está aqui sozinho a olhar para o rio, a sua alma está solitária e saudosa, e uma história podia dar-lhe alegria. Tive um dia cheio de histórias, disse eu, acho que não preciso de mais. O homem cruzou as pernas e apoiou o queixo nas mãos com ar meditabundo e disse: precisamos sempre de uma história mesmo parecendo que não.

Antonio Tabucchi, Requiem


20 de setembro de 2007


Luis Cernuda (1902-1963)



Déjame esta voz


Déjame esta voz que tengo,
Lo mismo que a la pampa le dejan
Sus matorrales de deseo,
Sus ríos secos colgando de las piedras.

Déjame vivir como acero mohoso
Sin puñas, tirando en las nubes;
No quiero saber de la gloria envidiosa
Con rabo y cuernos de ceniza.

Un anillo tuve de luna
Tendida en la noche a comienzos de otoño;
Lo di a un mendigo tan joven
Que sus ojos parecían dos lagos.

Me ahogué en fin, amigos;
Ahora duermo donde nunca despierto.
No saber más de mí mismo es algo triste;
Dame la guitarra para guardar las lágrimas.

Luis Cernuda

http://cvc.cervantes.es/obref/dvi/literatura/sxx/poesia/poesia_14.htm

Obrigada, de novo...




13 de setembro de 2007


Natália Correia (1923-1993)



Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços

de sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.


Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.


Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.


Natália Correia

11 de setembro de 2007

Voz do Outono




Ouve tu,meu cansado coração;
O que te diz a voz da Natureza:
-" Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste" -

Antero de Quental, Sonetos

http://indispensaveis.blogspot.com/2005/09/11-de-setembro-de-1891-o-ltimo-passeio.html

9 de setembro de 2007


Cesare Pavese (1908-1950)



PASSAREI PELA PRAÇA DE ESPANHA


O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
na colina de pinheiros e de pedra.
O tumulto das ruas
não mudará esse ar parado.
As flores das fontes
salpicadas de cores
abrirão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes -
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o odor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz extraviada.

Serás tu - quieta e clara.


Cesare Pavese


4 de setembro de 2007


José Luís Peixoto (1974)





não me arrependo das horas que perdi a esperar-te
quando ainda havia a esperança, a esperança que
havia ainda quando, a esperar-te, perdi horas de que
não me arrependo.


um instante na memória de chegares é mais valioso
do que jardins, do que montanhas, do que anos de
tempo.

arrependo-me de ficar ao sol, de sorrir, de esquecer
que devagar passam os dias. os dias passam devagar,
esquecendo-se de sorrir ao sol e de ficar onde me
arrependo.


José Luís Peixoto

1 de setembro de 2007


António Lobo Antunes (1942)

Qualquer luz é melhor que a noite escura



O frasco de verniz em cima do microondas, onde costuma deixar o bloco com os recados para a mulher a dias. Dou sem­pre com dois tipos de letra na mesma página, o recado dela em cima e a resposta da mulher a dias em baixo. Algumas moedas que sobraram das compras. E a canção americana a repetir den­tro de mim
Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Hoje o meu filho acordou a meio da noite a chorar. Tem só três anos. Pensei que fosse febre ou os dentes ou isso de modo que lhe peguei ao colo e o trouxe a observar a rua, da cozinha. Agrada-me a cozinha à noite, com a bancada de tampo de gra­nito e aqueles aparelhos eléctricos, quadrados e grandes, que parecem tornar-se mais úteis no escuro. Agrada-me o seu aspecto competente e os intestinos misteriosos cheios de para­fusos e ventoinhas. Máquinas brancas, óculos redondos onde a roupa gira misturada com espuma. Pensei ligar uma das máqui­nas para entreter o meu filho. Para me entreter a mim. As vezes sento-me numa cadeira e fico a ver. Dão estalos, mudam de velocidade, de ruído. Como organismos vivos. O meu filho cheira a sono e a lágrimas. A rua quieta. Automóveis alinhados contra o passeio. Descubro o meu entre uma furgoneta cinzenta coberta de pó e um carro tapado com um pano. Conheço o dono. Aos domingos, em calções, tira o pano e gasta horas a limpar o carro com uma esponja. Nunca sorri. Limpar o carro é para ele o acto mais importante deste mundo. Quando acaba mete-se de novo em casa e regressa passada meia hora com a família atrás. Passeiam até ao jantar orgulhosos da sua maravilha asseada. Há uma canção dizendo que qualquer luz é melhor que a noite escura. Uma voz americana, rugosa. Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Cansado de chorar o meu filho calou-se. Torno a deitá-lo. Fica quieto, de mãos fechadas, a dormir numa expressão de desdém. Torno à cozinha. A minha mulher deixou um frasco de verniz de unhas na bancada. Também ela dorme mas de bruços, prendendo a almofada. Acontece-lhe murmurar frases que não entendo sem sair do seu sono. O frasco de verniz em cima do microondas onde costuma deixar o bloco com os recados para a mulher a dias. Dou sempre com dois tipos de letra na mesma página, o recado dela em cima e a resposta da mulher a dias em baixo. Algumas moedas que sobraram das compras. E a canção americana a repetir dentro de mim
Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Por que motivo continuo aqui? Há o meu filho, há a minha mulher. Será só isso? Perguntas e perguntas sem qualquer res­posta. A minha cabeça anda cheia de perguntas. Não dúvidas. Não inquietações. Perguntas. A minha mãe costumava dizer-me Quando fores mais velho hás-de compreender. Não devo ter envelhecido seja o que for dado que não compreendo nada.
Concentro-me na rua enquanto farrapos de ideias, de lem­branças, me invadem e se afastam. Por exemplo a minha avó a tapar os espelhos com lençóis quando alguém morria na famí­lia. Garantia que se a morte se encontrasse no espelho nunca mais se ia embora. Também não nos deixava deitar pão fora: guardava saquinhos e saquinhos de pão duro. Quando havia demasiados sacos e a minha mãe protestava, a minha avó desaparecia na escada com eles e voltava de mãos a abanar. Nunca ninguém soube onde escondia o pão. Faleceu com setenta e seis anos e a partir do seu falecimento a morte passou a encontrar-se à vontade nos espelhos.
Daqui a nada volto para a cama. Os lençóis mornos. Os números fosforescentes do despertador a azularem o quarto. A gra­vura com uma criança e um urso. Tudo coisas reais. Agradáveis. Verdadeiras. Fixo-me na gravura e as perguntas abandonam-me a pouco e pouco. A lembrança da minha avó também. Onde escondia o pão? Já não penso nisso. Já não penso em nada. Sinto-me resvalar devagarinho descendo, descendo, com a can­ção a repetir-me aos ouvidos que qualquer luz é melhor que a noite escura. Qualquer luz é melhor que a noite escura. Mesmo que apareça uma rapariga muito bonita não hei-de abandonar a minha vida.

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas

26 de agosto de 2007


Julio Cortázar (1914-1984)


Instrucciones para llorar



Dejando de lado los motivos, atengámonos a la manera correcta de llorar, entendiendo por esto un llanto que no ingrese en el escándalo, ni que insulte a la sonrisa con su paralela y torpe semejanza. El llanto medio u ordinario consiste en una contracción general del rostro y un sonido espasmódico acompañado de lágrimas y mocos, estos últimos al final, pues el llanto se acaba en el momento en que uno se suena enérgicamente. Para llorar, dirija la imaginación hacia usted mismo, y si esto le resulta imposible por haber contraído el hábito de creer en el mundo exterior, piense en un pato cubierto de hormigas o en esos golfos del estrecho de Magallanes en los que no entra nadie, nunca. Llegado el llanto, se tapará con decoro el rostro usando ambas manos con la palma hacia adentro. Los niños llorarán con la manga del saco contra la cara, y de preferencia en un rincón del cuarto. Duración media del llanto, tres minutos.



Julio Cortázar, Historias de cronopios y de famas

24 de agosto de 2007


Jorge Luís Borges (1899-1986)



El amenazado


Es el amor. Tendré que cultarme o que huir.
Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz.
La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre es la única.
¿De qué me servirán mis talismanes: el ejercicio de las letras,
la vaga erudición, el aprendizaje de las palabras que usó el áspero Norte para cantar sus mares y sus espadas,
la serena amistad, las galerías de la biblioteca, las cosas comunes,
los hábitos, el joven amor de mi madre, la sombra militar de mis muertos, la noche intemporal, el sabor del sueño?
Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo.
Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se
levanta a la voz del ave, ya se han oscurecido los que miran por las ventanas, pero la sombra no ha traído la paz.
Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, la espera y la memoria, el horror de vivir en lo sucesivo.
Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles.
Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar.
Ya los ejércitos me cercan, las hordas.
(Esta habitación es irreal; ella no la ha visto.)
El nombre de una mujer me delata.
Me duele una mujer en todo el cuerpo.


Jorge Luís Borges


23 de agosto de 2007


Edgar Lee Masters (1868-1950)

George Gray


I have studied many times
The marble which was chiseled for me--
A boat with a furled sail at rest in a harbor.
In truth it pictures not my destination
But my life.
For love was offered me and I shrank from its disillusionment;
Sorrow knocked at my door, but I was afraid;
Ambition called to me, but I dreaded the chances.
Yet all the while I hungered for meaning in my life.
And now I know that we must lift the sail
And catch the winds of destiny
Wherever they drive the boat.
To put meaning in one's life may end in madness,
But life without meaning is the torture
Of restlessness and vague desire--
It is a boat longing for the sea and yet afraid.

Edgar Lee Masters, Spoon River Anthology

Obrigada, Roberto...

18 de agosto de 2007

Carta a Mário de Sá-Carneiro


Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu,

FERNANDO PESSOA

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características...
Você acha-me razão, não é verdade?

16 de agosto de 2007


Charles Bukowski (1920-1994)



Oh Yes


there are worse things than
being alone
but it often takes decades
to realize this
and most often
when you do
it's too late
and there's nothing worse
than
too late.

Charles Bukowski

15 de agosto de 2007


Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)



Do Outono II


Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.

Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.



Fiama Hasse Pais Brandão

12 de agosto de 2007


Miguel Torga (1907-1995)


VIAGEM

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
( Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).


Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura.
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga
.
.

11 de agosto de 2007


Carlos de Oliveira (1921-1981)

.

EDGAR ALLAN POE



O inverno em Boston foi breve. Ele bebia. Sílabas abriam-se uma a uma pelos cantos do quarto. Gotas de álcool. Quem se lembra da chuva caída no seu nome?
Folheou toda a noite os livros ancestrais e encontrou qualquer coisa, ninguém sabe o quê, talvez o retrato de Annabel Lee. Esboçou-o na vidraça carregada de sombra e o quarto amanheceu.
«Mas isso pouco vale (diz a magia negra), o filtro apenas decompôs mais cedo o horror em luz, não alterou a solidão dos dias, que a noite separa uns dos outros para sempre».



.
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético






.

9 de agosto de 2007


Mário Cesariny (1923-2006)



de profundis amamus


Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso



Mário Cesariny






30 de julho de 2007


Mário Quintana (1906-1994)




Poema da gare de Astapovo


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!

Mário Quintana

7 de julho de 2007

Marc Chagall, «O Violinista Azul»
Marc Chagall (1887-1985)

29 de junho de 2007


Vasko Popa (1922-1991)


Give me back my rags #8

So you want us to love each other
You can make me out of ashes
The trash of my belly laughs
Out of what’s left of my boredom
You can doll-face
You can grab me by the hair of my short memory
Hug my night in its empty shirt
Kiss and kiss my echo
And you don’t even know how to love
.
Vasko Popa (tradução inglesa de Charles Simic)

9 de junho de 2007


José Gomes Ferreira (1900-1985)

Acendi o fogão
mas continuo gelado
no dia mais frio do tempo
ou, se quiserem, do ano.
Outra pá de carvão
e sento-me ao piano
para aquecer os dedos
nas pequeninas chamas que saem das teclas
e desenham com sons de outro lume
o perfume a da solidão.

A música tem os seus segredos,
como o de trazer do centro da terra
o fogo misterioso
do frio em combustão.

José Gomes Ferreira, Poesia VI

j

1 de junho de 2007


Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967)

12 de maio de 2007

Eco

Vagas são as promessas e ao longe,
muito longe, uma estrela.

Cruel foi sempre o seu fulgor:
sonâmbulas cidades, ruas íngremes,
passos que dei sem onde.

Era esse o meu reino, e era talvez essa
a voz da própria lua.
Aí ficou gravada a minha sede.
Aí deixei que o fogo me beijasse
pela primeira vez.

Agora tenho as mãos vazias,
regresso e sei que nada me pertence
- nenhum gesto do céu ou da terra.
Apenas o rumor de breves sombras
e um nome já incerto que por mágoa
não consigo esquecer.

Fernando Pinto do Amaral

.

29 de abril de 2007


Nuno Júdice (1949)


ALEGORIA

Faço um castelo na areia do futuro. Torres
de névoa, ameias de fumo, pontes levadiças
de indecisão. Vejo a areia escoar-se
na ampulheta dos séculos; e um exército
de ondas rompe as linhas do infinito,
derrubando os muros da manhã.

Nuno Júdice, Pedro Lembrando Inês

.

18 de abril de 2007


Antero de Quental (1842-1891)


SEPULTURA ROMÂNTICA

Ali, onde o mar quebra, num cachão
Rugidor e monótono, e os ventos
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se há-de enterrar meu coração.

Queimem-no os sóis da adusta solidão
Na fornalha do estio, em dias lentos;
Depois, no inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o árido chão...

Até que se desfaça e, já tornado
Em impalpável pó, seja levado
Nos turbilhões que o vento levantar...

Com suas lutas, seu cansado anseio,
Seu louco amor, dissolva-se no seio
Desse infecundo, desse amargo mar!

Antero de Quental, Sonetos



15 de abril de 2007

Name of a tree


Some days I am Ana's teacher, some days she is mine.
This morning, we look through her kitchen window,
the one she can't get clean, cobwebs massed
between sash and pane. The sky is blue-gold, almost
the color of home.
Ana, I say, each winter
I get more lonely. Both of us would like the sun
to linger as that fruit in June, but Ana says
it's better to forget what you used to know...

Catherine Anderson

7 de abril de 2007

Almada Negreiros, «Auto-Retrato»
Almada Negreiros (1893-1970)

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Almada Negreiros
.

11 de março de 2007


Sebastião Alba (1940-2000)



N
inguém meu amor

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos


Sebastião Alba
.

10 de março de 2007

Sonnet CXXX

My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound.
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground.
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.

William Shakespeare



Sonnet CXLI

In faith, I do not love thee with mine eyes,
For they in thee a thousand errors note;
But 'tis my heart that loves what they despise,
Who in despite of view is pleased to dote;
Nor are mine ears with thy tongue's tune delighted,
Nor tender feeling, to base touches prone,
Nor taste, nor smell, desire to be invited
To any sensual feast with thee alone:
But my five wits nor my five senses can
Dissuade one foolish heart from serving thee,
Who leaves unsway'd the likeness of a man,
Thy proud hearts slave and vassal wretch to be:
Only my plague thus far I count my gain,
That she that makes me sin awards me pain.

William Shakespeare

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21 de fevereiro de 2007


W. H. Auden (1907-1973)



Miranda


My Dear One is mine as mirrors are lonely,
And the poor and sad are real to the good king,
And the high green hill sits always by the sea.

Up jumped the Black Man behind the elder tree,
Turned a somersault and ran away waving;
My Dear One is mine as mirrors are lonely.

The Witch gave a squawk; her venomous body
Melted into light as water leaves a spring,
And the high green hill sits always by the sea.

At his crossroads, too, the Ancient prayed for me,
Down his wasted cheek tears of joy were running:
My Dear One is mine as mirrors are lonely.

He kissed me awake and no one was sorry;
The sun shone on sails, eyes, pebbles, anything,
And the high green hill sits always by the sea.

So to remember our changing garden, we
Are linked as children in a circle dancing:
My Dear One is mine as mirrors are lonely,
And the high green hill sits always by the sea.

W. H. Auden




11 de fevereiro de 2007


Else Lasker-Schüler (1869-1945)



Parting

But you never came with the evening —
I sat waiting in a shawl of stars...
Whenever there was a knocking at my door,
It was my own heart.
It now hangs on every doorpost,
Even on yours;
Between the ferns the fireroses expireI
n the withering garland.
I dyed the heaven blackberry
With my heartblood.
But you never came with the evening —
... I stood waiting in golden shoes.

Else Lasker-Schüler

versão inglesa de A. Durchschlag e J. Litman-Demeestere

4 de fevereiro de 2007


João de Melo (1949)

Eu sou talvez de todos o mais sóbrio. Bebo só até ao limite do meu próprio desejo do vinho. Porque o vinho alegra, aviva e expõe os estados feridos da minha alma; ele gira e corre no meu sangue como a máquina dos sonhos que se movem ocultos no meu conheci­mento de mim; e alivia e liberta o meu coração dos verbos proibidos e dos pensamentos frios. O vinho sou eu e os meus inofensivos delitos. Sabe-o bem a minha mulher; sabe-o no momento em que meto a chave à porta e entro em casa. Nunca me viu cambalear, nem decerto me ouviu dizer grandes disparates. Mas basta-lhe pousar os olhos nos meus olhos e os lábios nos meus lábios: ninguém como ela conhece a razão de ser do vinho no meu hálito e no meu olhar; ninguém como ela sabe que a tragédia de certos homens con­siste precisamente em nunca terem estado à altura de tragédia nenhuma; ninguém como a minha mulher compreende quão importante é para mim mudar de vez em quando o meu mundo, soltar o pássaro que em mim deixou de cantar, abrir-me em quilha, rasgar a vela do meu barco e erguer ao vento do mar impossí­vel os destinos da alma; ninguém como ela até hoje percebeu o que sofre um homem que não sofre, um homem que se despediu de todos e de cada um dos seus sonhos de homem, no tempo do seu país — por­que só ela, minha mulher, me acompanha à cama; só ela vê como me deixo cair não ao comprido, mas de atravessado na nossa cama de casal, à maneira de um desesperado que tivesse naufragado à vista da praia. Só ela me despe, me enfia o pijama e põe a direito na cama; só ela me tapa com um lençol e dois cobertores para que eu possa dormir sem correr o risco de gelar de madrugada; e só ela volta — então mais só do que nunca — para o silêncio da noite e da cozinha, a fim de se sentar à mesa, olhar as horas paradas no relógio da parede e (comigo ausente da sua vida) comer pão com lágrimas, beber leite frio com cevada e ficar para ali, hora após hora, a tentar desistir da vida, de mim, da minha mágoa de homem nascido para nada, ainda que sem o conseguir — e a chorar por ela e por mim, mas também para nada.

João de Melo, As Coisas da Alma

16 de janeiro de 2007


Carlos Pellicer(1899-1977)

HOY QUE HAS VUELTO

Hoy que has vuelto, los dos hemos callado,
y sólo nuestros viejos pensamientos
alumbraron la dulce oscuridad
de estar juntos y no decirse nada.

Sólo las manos se estrecharon tanto
como rompiendo el hierro de la ausencia.
¡Si una nube eclipsara nuestras vidas!

Deja en mi corazón las voces nuevas,
el asalto clarísimo, presente,
de tu persona sobre los paisajes
que hay en mí para el aire de tu vida.

Carlos Pellicer

HOJE, QUE REGRESSASTE

Hoje, que regressaste, calámo-nos os dois,
e só os nossos velhos pensamentos
iluminaram a doce obscuridade
de estar juntos e não se dizer nada

Só as mãos se estreitaram tanto
como rasgando o ferro da ausência.
Se uma nuvem eclipsasse as nossas vidas!

Deixa em meu coração as vozes novas,
o assalto claríssimo, presente,
da tua pessoa sobre as paisagens
que há em mim para o ar da tua vida.

Carlos Pellicer (tradução de Mito )

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11 de janeiro de 2007


Al Berto (1948-1997)



ENCOMENDA POSTAL

destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás
a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta


Al Berto
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