29 de dezembro de 2010







Não me digas mais nada. O resto é vida.

Sob onde a uva está amadurecida

moram os meus sonos, que não querem nada.

Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.



Sob os ramos que falam com o vento,

inerte, abdico do meu pensamento.

Tenho esta hora e o ócio que está nela.

Levem o mundo: deixem-me o momento! (...)



Não digas nada que tu creias. Fala

como a cigarra canta. Nada iguala

o ser um som pequeno entre os rumores

com que este mundo...



A vida é terra e o vivê-la é lodo.

Tudo é maneira, diferença ou modo.

Em tudo quanto faças sê só tu,

em tudo quanto faças sê tu todo.




Fernando Pessoa

2 de outubro de 2010




















No place to fall

If I had no place to fall

and I needed to
could I count on you
to lay me down?

(...)

Skies full of silver and gold
try to hide the sun
but it can't be done
least not for long

And if we help each other grow
while the light of day
smiles down our way
then we can't go wrong

Time, she's a fast old train
she's here then she's gone
and she won't come again
won't you take my hand

If I had no place to fall
and I needed to
could I count on you
to lay me down?

Townes Van Zandt

3 de setembro de 2010




La noche

1

No consigo dormir. Tengo una mujer atravesada entre los párpados. Si pudiera, le diría que se vaya; pero tengo una mujer atravesada en la garganta.


2

Arránqueme, señora, las ropas y las dudas. Desnúdeme, desdúdeme.


3

Yo me duermo a la orilla de una mujer: yo me duermo a la orilla de un abismo.


4

Me desprendo del abrazo, salgo a la calle.
En el cielo, ya clareando, se dibuja, finita, la luna.
La luna tiene dos noches de edad.
Yo, una.


Eduardo Galeano, El Libro de los Abrazos

30 de agosto de 2010



for Jim Gustafson


Last Words

"That's the way it goes."
"More light, please."
"Whose side are you on anyway?"
"Goodnight, sweet Prince."
"Shut the door on your way out."
"You want I should call you a cab?"

Bill Berkson

28 de agosto de 2010



Cozy Apologia

For Fred


I could pick anything and think of you—
This lamp, the wind-still rain, the glossy blue
My pen exudes, drying matte, upon the page.
I could choose any hero, any cause or age
And, sure as shooting arrows to the heart,
Astride a dappled mare, legs braced as far apart
As standing in silver stirrups will allow—
There you'll be, with furrowed brow
And chain mail glinting, to set me free:
One eye smiling, the other firm upon the enemy.


This post-postmodern age is all business: compact disks
And faxes, a do-it-now-and-take-no-risks
Event. Today a hurricane is nudging up the coast,
Oddly male: Big Bad Floyd, who brings a host
Of daydreams: awkward reminiscences
Of teenage crushes on worthless boys
Whose only talent was to kiss you senseless.
They all had sissy names—Marcel, Percy, Dewey;
Were thin as licorice and as chewy,
Sweet with a dark and hollow center. Floyd's


Cussing up a storm. You're bunkered in your
Aerie, I'm perched in mine
(Twin desks, computers, hardwood floors):
We're content, but fall short of the Divine.
Still, it's embarrassing, this happiness—
Who's satisfied simply with what's good for us,
When has the ordinary ever been news?
And yet, because nothing else will do
To keep me from melancholy (call it blues),
I fill this stolen time with you.

Rita Dove

27 de agosto de 2010



Lo más natural

Me dejaste -como ibas de pasada-
lo más inmaterial que es tu mirada.

Yo te dejé -como iba tan de prisa-
lo más inmaterial, que es mi sonrisa.

Pero entre tu mirada y mi risueño
rostro quedó flotando el mismo sueño.

Amado Nervo

7 de julho de 2010

Marc Chagall, Paysage bleu


6 de julho de 2010

Frida Kahlo, Auto-retrato, 1929

4 de julho de 2010



Clarissa Vaughan: I remember one morning getting up at dawn, there was such a sense of possibility. You know, that feeling? And I remember thinking to myself: So, this is the beginning of happiness. This is where it starts. And of course there will always be more. It never occurred to me it wasn't the beginning. It was happiness. It was the moment. Right then.

19 de junho de 2010






Desce Baltasar ao vale, vai para casa, é certo que o trabalho ainda não despegou na obra, mas, vindo ele tão esforçadamente de longe, desde Santo António do Tojal em um só dia, não esqueçamos, tem direito a recolher mais cedo, depois de descangados e pensados os bois. O tempo, às vezes, parece não passar, é como uma andorinha que faz o ninho no beiral, sai e entra, vai e vem, mas sempre à nossa vista, julgaríamos, nós e ela, que iríamos ficar assim a eternidade, ou metade dela, o que já não seria mau. Mas, de repente, estava e já não está, mesmo agora a vi, onde é que se meteu, e se temos à mão um espelho, Jesus, como o tempo passou, como eu me tornei velho, ainda ontem era a flor do bairro, e hoje nem bairro nem flor. Baltasar não tem espelhos, a não ser estes nossos olhos que o estão vendo a descer o caminho lamacento para a vila, e eles são que lhe dizem, Tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Bal­tasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escân­dalo da vila de Mafra, agarrarem-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver, agora que eles estão juntos até os nossos olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos.
José Saramago, Memorial do Convento



13 de junho de 2010




[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 4 Ago. 1923]

Meu querido Côrtes-Rodrigues:
Há não sei quantos anos que lhe não escrevo: há tanto tempo que teria agora tanto que contar-lhe que não posso contar-lhe. Só quando falarmos — quando, encontrando-nos, falarmos longamente — poderei contar tudo quanto há a contar desde que nos perdemos de vista e de escrita.
V. o que tem feito? Notícias suas, de certo modo, tenho-as sempre tido, ou pelo Rocha (que acaba de me transmitir as saudades que me envia) ou pelo Duarte de Viveiros.
Esta carta é apenas para lhe escrever — escrever dizendo seja o que for, tornar a falar-lhe, ainda que por escrito... Tanta saudade — cada vez mais tanta! — daqueles tempos antigos do Orpheu, do paùlismo das intersecções e de tudo mais que passou! V. não imagina, apesar da enorme influência que ficou do Orpheu diminuído, moral e intelectualmente tudo.
V. tem visto a Contemporânea. É, de certo modo a sucessora do Orpheu. Mas que diferença! que diferença! Uma ou outra coisa relembra esse passado; o resto, o conjunto...
Escreva-me v., escreva-me sempre que possa. O meu endereço é o mais simples possível: apenas Caixa Postal 147, Lisboa. Se extraviar esta carta e esquecer portanto o 147, lembre-se que basta pôr: Fernando Pessoa - Caixa Postal — Lisboa. Mesmo sem número me chega às mãos.
Dê-me notícias suas, extensas se puder.
Um enorme abraço saudoso e amigo do

Sempre e muito seu

Fernando Pessoa

4-8-1923.


Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues.
(Introdução de Joel Serrão.)Lisboa: Confluência, 1944

10 de junho de 2010



O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.


Luís de Camões

8 de junho de 2010





devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.


José Luis Peixoto

6 de junho de 2010

1 de junho de 2010



12

até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis



pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado
talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca
desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti



Alice VIeira, Dois Corpos Tombando na Água

24 de maio de 2010

16 de maio de 2010




Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.



Daniel Faria

13 de maio de 2010


8 de maio de 2010




As árvo­res cres­cem sós.
E a sós flo­res­cem.
Come­çam por ser nada.

Pouco a pouco
se levan­tam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Cres­cendo dei­tam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nas­cem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esbo­çando as flo­res,
e então cres­cem as flo­res, e as flo­res pro­du­zem fru­tos,
e os fru­tos dão semen­tes,
e as semen­tes pre­pa­ram novas árvores.

E tudo sem­pre a sós, a sós con­sigo mes­mas.
Sem verem, sem ouvi­rem, sem fala­rem.
Sós.
De dia e de noite.
Sem­pre sós.

Os ani­mais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvo­res não.
Soli­tá­rias, as árvo­res,
exau­ram terra e sol silen­ci­o­sa­mente.
Não pen­sam, não sus­pi­ram, não se quei­xam.
Esten­dem os bra­ços como se implo­ras­sem;
com o vento sol­tam ais como se sus­pi­ras­sem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sem­pre sós.
Nas pla­ní­cies, nos mon­tes, nas flo­res­tas,
a cres­cer e a flo­rir sem consciência.

Vir­tude vege­tal viver a sós
e entre­tanto dar flores.


Antó­nio Gedeão


24 de abril de 2010




Sossegar



para a Irene Pereira


O que eu mais queria neste mundo era sossegar. Eis um verbo que é preciso redimir. Sossegar não é descansar, nem traz felicidade, nem se assemelha, senão superficialmente, à paz ou à tranquilidade. Não quero acalmar-me, ou serenar, ou assentar. O sossego é um estado de bonança.
O sossego é um estado de excepção, em que a alma vem ao encon­tro do corpo. Pode sossegar-se em momentos de grande agitação, de um acesso de amor, em que esse amor parece lucidez. É este o sossego com que sonho — uma presença consciente de verdade no que se sente -, oposto à parança estúpida, queda e adormecida, falsa, aquém da aler­ta. Não gosto do sossego como alívio ou interrupção. Nem gosto da maneira como se usa o verbo descansar, que deveria significar repousar (recuperar as forças, etc.) em vez de sossegar, como por exemplo: «Ainda bem que me avisaste, porque assim fico mais descansada». É tão ridículo como uma criada dizer: «A senhora não pode vir ao telefone porque está a sossegar».
Na época do stress e dos calmantes, das psicoterapias e das manias new age, sossegar foi destituído da sua beleza própria, da sua frescura, da sua actividade.
Sossegar não é descansar - não é uma consequência do cansaço. Quando Rebelo da Silva, citado por Moraes, que por sua vez cita o dicionário de Freire, diz «O coração não sossega, a vida cansa», ambas as coisas são verdadeiras, mas a associação é enganadora, porque o cora­ção não sossega por causa de a vida cansar. Há cansaços bons. Não. O coração não sossega, porque não tem com que sossegar.
Mais que a felicidade e a paz, o mundo precisa de sossegar. O sossegamento é a forma mais precisa de liberdade. Mas não é uma liberdade negativa (estar livre de medos, de constrangimentos, de opressões), mas uma liberdade positiva — uma liberdade para sentir o que se sente e con­fiar no que se sente, e ter tempo, e vontade, e confiança no que se faz.
Quando se olha para o rosto duma pessoa amada, ou se recebe dela um gesto de amor, sossega-se. Quando se sabe de antemão o que vai acontecer, ou como alguém se vai comportar, sossega-se. Quando se participa num acto de bondade, ou se assiste a um, sossega-se. Quando se é desculpado, sossega-se. Quando se faz uma promessa ou um plano que sabemos que se irá cumprir, sossega-se. Isso é sossegar.
Quando dois amantes decidem ter um filho, por muito medo que isso possa provocar, sossega-se. Quando aparece um amigo sem avisar, interrompendo tudo o que se tencionava fazer, sossega-se. Quando se está a lutar contra a injustiça e a maldade, com todas as forças que se tem, sossega-se. Quando se lê um poema ou uma história bonita, por muito triste que seja, sossega-se. Quando se acredita em Deus. Isso, sim, é sossegar.
Gosto de sossegar como verbo transitivo. Sossegar só por si não chega. É mais bonito sossegar alguém. Quando se pede «Sossega o meu coração» e se consegue sossegar. Quando se sai, quando se faz um esfor­ço para sossegar alguém. E não é adormecendo ou tranquilizando, em jeito de médico a dar um sedativo, que se sossega uma pessoa. É enchendo-lhe a alma de amor, confiança, alegria, esperança e tudo o mais que é o presente a tornar-se, de repente, futuro. É o futuro que sossega. «Amanhã vamos passear» sossega mais que «Não te preocupes» ou «Deixa lá, que eu trato disso».
A aquietação, como o sono, é uma espécie de morte. Sossegar não é jazer. É viver. Uma pessoa sossegada é capaz de deitar abaixo uma floresta. O sossego não é um descanso — é uma força. Não é estar isolado e longe, deixado em paz - é estar determinado no meio do turbilhão da vida.
O sossego é, em grande parte, uma expressão espiritual de segurança. Sossegar é saber com o que se conta, desde o azul do céu aos irmãos. O coração sossega em quem se conhece. Sossegar é conhecer uma tota­lidade, as coisas feias ou bonitas, mas previsíveis e familiares. É por isso que sossega olhar para um rosto amado, que se conhece, ouvir a voz dessa pessoa, mesmo quando está a dizer disparates. Não há falinhas mansas que tragam o sossego dos gritos duma pessoa com quem se pode contar. E um alívio. Só a ordem pode sossegar, por muito alterosa que seja. A tempestade sossega o marinheiro que conhece bem o barco e o mar.
No nosso tempo as pessoas querem o sossego menor das sopas e do descanso. Serem «deixadas» dalguma forma ou doutra: «Eu quero é que me deixem em paz». Querem fugir. Querem ir para o campo. Meditar. Descobrir o «eu» interior. Mas a solidão e o silêncio não sossegam. Para isso mais vale tomar um Lexotan.
Só os outros nos podem sossegar mesmo no meio da vida, em plena acção, se pode, e vale a pena, estar sossegado. O «eu» interior é uma algazarra de desasossego. Para mais, árida e desinteressante. O budismo de trazer por casa que invadiu a nossa cultura, uma espécie de narcisis­mo espiritual, traduz uma noção repugnante de superioridade. Os outros podem ser o inferno, mas cada indivíduo ainda o é mais.
Não me saem da cabeça os instantes, poucos, em que me senti sos­segar - e foi sempre graças a outra pessoa, vista ou lida, conhecida ou desconhecida, viva ou morta, menina ou crescida, sábia ou maluca, próxima ou longínqua, mas sempre presente, mais presente que eu pró­prio. Eu próprio, por defeito, talvez, não consigo lá chegar. Nunca encontrei o sossego nos outros — foram sempre os outros que me sosse­garam. E quase nunca deliberadamente.
Lembro-me, em particular, dum momento, que obviamente não vou contar, mas que consistiu apenas em olhar para alguém e sentir que tudo nela me era querido e conhecido e familiar.
Não há no mundo paisagem como o rosto duma pessoa amada, sobretudo quando está agitado, a rir-se ou a zangar-se, desprevenido,apanhado nos nossos olhos como se estivesse dentro deles já. Sentir essa mistura de perdição e de proximidade é verdadeiramente sossegar.


Miguel Esteves Cardoso, Explicações de Português (texto com supressões)


18 de abril de 2010

Van Gogh, Noite Estrelada




NOX

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

Antero de Quental, Sonetos

10 de abril de 2010


27 de março de 2010




Encostei-me a ti,
sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem
depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso,
e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí.


Cecília Meireles


27 de fevereiro de 2010

Foto de Irene Suchocki

Às vezes tenho medo, muito medo.
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na
possibilidade de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.

Todas as doenças pertencem a toda a gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e está a envelhecer.
Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de
lhes querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter ideias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.

Gonçalo M. Tavares, O homem ou é tonto ou é mulher

14 de fevereiro de 2010




Se nesse dia eu tivesse medido 3 metros e 28 centímetros e tivesse chegado com a minha cabeça depositada numa bandeja, não essa cabeça que às vezes já imaginaste quando não estou, quando ainda não cheguei, quando ainda não sou eu, mas sim essa cabeça que é outra cabeça na qual não te encontras, nem descobres sinais, nem um corpo, nem uma voz que te fale. Eu, cai o fruto da árvore, a lágrima do abandono. É o mundo, é o sonho, é o teu nascimento, é o dia em que cai a tua cabeça. Devias estar contente porque ainda conservas o teu sorriso. Eu, é o som, o reconhecimento das vozes que te habitam, o rumor do rio. Ah, se eu tivesse sido essa cabeça e a fúria da espada e o caminho desesperado que se segue para deter o juízo com as lágrimas crispadas entre os braços e uma árvore, uma enorme árvore desmaiando dentro do peito. Corre, corre, corre, corre. Se o fizeres depressa talvez possas chegar a ver o dia da tua morte. 3 metros e 28 centímetros com a cabeça bordada no passado e a música submersa. Corre, corre, corre, até conseguires dar com as tuas costas, até te encontrares contigo próprio e te aperceberes que corres atrás de ti, corre até ultrapassares 365 dias e veres o mundo como um chapéu que um elefante comeu e esse elefante foi comido por uma serpente.

Oliverio Macias Alvarez , Um Mundo Estranho
(tradução de José Agostinho Baptista)

6 de fevereiro de 2010

Foto de Pedro Cruz



O Poeta em Lisboa

Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.

Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.
Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magntfico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos,
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

António José Forte

31 de janeiro de 2010



A caixa das cartas antigas


Ainda está por decidir a caixa
onde somamos
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas
como ordenar essas linhas
(mesmo que
para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser
desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?

chaves que deves fazer por
perder nas despedidas
se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um
voo mais desprevenido.



João Luís Barreto Guimarães

23 de janeiro de 2010




Love after Love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,


and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you


all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,


the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.


Derek Walcott

11 de janeiro de 2010

Fotografia de Ibán Ramón

o sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforecente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras
falam os rios deste regresso e pelas margens ressoam passos
os poços onde nos debruçámos aproximam-se perigosamente
da ausência e da sede procurámos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos
e um dia...quem sabe?
chegaremos
Al Berto





7 de janeiro de 2010




Cheguei a ter medo de te perder,
tu não chegaste sequer a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
ouve-se nas outras palavras que trocamos.

Miserável mundo nosso e alheio,
igual ao que todos disseram da sua época,
e pior, porque este vivemos nós
e conhecemos nós, cada um conforme pode.

Já morrerem os ídolos todos da infância
e os da adolescência vão a caminho,
sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje há já só um dos Righteous Brothers).

Na feira de velharias uma caixa
para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
num dos cantos, uma pequena cruz de cal.

Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
e o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos,
eco um do outro em ricochete de silêncios.

Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005

5 de janeiro de 2010

3 de janeiro de 2010

Foto de Carla van de Puttelaar



fragmento


são asas de alvoroço ou são sinais?

são sombras agitadas na descida?
são palavras aladas junto ao cais?

são um rumor no vento? ou repetida
animação do instante nas manhãs
quando ao passar da gente passa a vida

e alguém espera olhando as horas vãs?


Vasco Graça Moura