28 de fevereiro de 2005


William Degouve de Nuncques (1867-1935),
CANAL SOUS UN CIEL GRIS

27 de fevereiro de 2005


Ruy Belo (1933-1978)


Através da chuva e da névoa

Chovia e vi-te entrar no mar
longe de aqui há muito há muito tempo já
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Mais tarde olhei-te e nem te conhecia
Agora aqui relembro e pergunto:
Qual é a realidade de tudo isto?
Afinal onde é que as coisas continuam
e como continuam se é que continuam?
Apenas deixarei atrás de mim tubos de comprimidos
a casa povoada o nome no registo
uma menção no livro das primeiras letras?
Chovia e vi-te entrar no mar
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Que importa que algures continues?
Tudo morreu: tu eu esse tempo esse lugar
Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e para todos

Ruy Belo

26 de fevereiro de 2005


Fernando Echevarría (1929)


Quem escreve é a solidão. Se cresce tanto
que a espessura analítica do sono
liberta o tempo, nos ajusta o braço
à infalível mecânica em que formos

ouvindo apenas o que opera ao alto
de estarmos tão perdidos que nem somos.
Só escreve a solidão. Nós escutamos
ranger o eixo numeral em torno

do qual a solidão se desenfreia
e, tão dentro de si, se consolida
que a rotação alisa o ouro à ideia

que canta a transparência conseguida,
à luz da solidão, escrevemos
o esquecimento do que nunca temos.

Fernando Echevarría

.

Amin Maalouf (1949)


[...]
CORO DAS TRIPOLITANAS:
Ei-la que se deixa apanhar nas redes desse tro­vador
Ela canta as canções dele, ela sente-se lison­jeada
Mas que fruto pode dar o amor de longe?
Nem boa companhia, nem doce amplexo,
Nem bodas, nem terras, nem filhos,
Que fruto pode então dar o amor de longe?
Ele só vai afastar dela aqueles que cobiçam a sua mão
O príncipe de Antioquia e o antigo conde de Edessa...
(sussurrando)
E mesmo, diz-se, diz-se, o filho do basileu...

UMA VOZ NA MULTIDÃO:
Vós todas que a censurais
Que vos trouxeram os vossos homens tão pró­ximos?
Príncipes ou servos fazem de vós servas.
Quando estão perto de vós, sofreis, e quando eles se vão, sofreis também...

CLÉMENCE:
Falaste verdade, minha filha, minha amiga,
Bendita sejas! Bendita sejas!

CORO DAS TRIPOLITANAS:
Pois vós, condessa, não sofreis?
Não sofreis por estar tão longe daquele que vos ama?
Por não adivinhar no seu olhar se ele vos de­seja ainda?
Não sofreis por não saber sequer como é o seu olhar?
Não sofreis por nunca poder fechar os olhos sentindo os seus braços envolver-vos e puxar-vos contra o seu peito?
Não sofreis por nunca nunca sentir a sua res­piração na vossa pele?

CLÉMENCE (como que surpresa):
Não, por Nosso Senhor, eu não sofro
Talvez que um dia eu sofra, mas pela graça de Deus, não, não sofro ainda
As canções dele são mais do que carícias, e eu não sei se amaria o homem como amo o poeta
Não sei se amaria a sua voz tanto como amo a sua música
Não, por Nosso Senhor, eu não sofro
Sem dúvida sofreria se esperasse esse homem e ele não viesse
Mas eu não o espero
Por saber que lá, no país, um homem pensa em mim,
Sinto-me de repente perto das terras da minha infância.
Eu sou o ultramar do poeta e o poeta é o meu ultramar.
Entre as nossas duas margens viajam as pala­vras ternas
Entre as nossas duas vidas viaja uma música...
Não, por Nosso Senhor, que não sofro
Não, por Nosso Senhor, que não o espero
Não o espero...
[...]

Amin Maalouf, O Amor de Longe


24 de fevereiro de 2005


David Mourão-Ferreira (1927-1996)


E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

.

23 de fevereiro de 2005

[...]

Uma noite dos meus quinze anos dei comigo a chorar. Não sei já qual foi o caminho que me conduziu às lágrimas, tudo vai tão longe, perdido na fita branca do passado. Só me recordo de que o pai me ouviu e se levantou. Sentou—se ao de leve na borda da minha cama, pôs—se a acariciar—me os cabelos, quis saber o que eu tinha.
— Estou só, pai. Não é mais nada. Dei porque estava só e isso pareceu-me... Que parvoíce, não é? Estou agora só! E tu então?
Tentei rir a tapar-me, já arrependida da franqueza, mas ele não colaborou e isso salvou-o da raiva que eu havia de lhe ter na manhã seguinte. Não se riu e a sua voz, quando veio, era muito doce, quase triste.
—Também deste por isso—disse brandamente. —Também deste por isso. Há gente que vive setenta e oitenta anos, até mais, sem nunca se dar conta. Tu aos quinze... Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança.
— Mas tu, pai...
— Eu... As pessos que enchem o teu mundo são diferentes das do meu... No fundo é muito provável que algumas delas sejam as mesmas, mas aí está, se fosse possível encontrarem-se não se reconheciam nem mesmo fisicamente... Como havemos de nos ajudar? Ninguém pode, filha, ninguém pode...
Ninguém pôde.
[...]
.
Maria Judite de Carvalho, Tanta Gente, Mariana
.

22 de fevereiro de 2005


Joaquim Pessoa (1948)


Amor Combate

Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.

Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:

O nosso amor é sangue. É seiva. É sol. É Primavera.
Amor intenso. amor imenso. amor instante.
O nosso amor é uma arma. É uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.

O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa.
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.

Deixa-me soltar estas palavras amarradas
para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade.
Amor-combate. Amor-abril.
Este amor de liberdade.

Joaquim Pessoa

.

21 de fevereiro de 2005


W. H. Auden (1907-1973)


The More Loving One

Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.

Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.

W. H. Auden, Homage to Clio

20 de fevereiro de 2005

A tarde estava errada,
não era dali, era de outro Domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.

E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num tempo alheio e impresente.

Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.

Manuel António Pina

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Mihály Munkácsy (1844-1900), Woman Carrying Faggots (Rõzsehordó nõ)

19 de fevereiro de 2005

SEM TÍTULO E BASTANTE BREVE

Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e com elas quero
construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, à beira mar

dizem que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito interrogar-
-se acerca da melancolia das mãos
esta memória-lâmina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
que sei eu sobre tempestades do sangue? e da água?
no fundo, só amo o lado escondido das ilhas

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão

Al Berto

.

17 de fevereiro de 2005

A PRESENÇA MAIS PURA

Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


José Tolentino Mendonça, A Que Distância Deixaste o Coração


16 de fevereiro de 2005


Carlos Paredes (1925-2004)


Se há palavras cheias de música, também há melodias com palavras dentro.
Ler Pedro Tamen também é uma forma de ouvir Carlos Paredes.


Verdes Anos

Era o amor
Que chegava e partia
Estarmos os dois
Era um calor que arrefecia
Sem antes nem depois

Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos verdes anos

Foi o tempo que secou
A flor que ainda não era
Como o outono chegou
No lugar da primavera

No nosso sangue corria
Um vento de sermos sós
Nascia a noite e era dia
E o dia acabava em nós

Pedro Tamen

http://www.geocities.co.jp/Hollywood/4061/som-n.htm

14 de fevereiro de 2005

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas

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13 de fevereiro de 2005

Não sei o que seria da minha vida se não fosse a colecção de borboletas. Sobretudo no inverno, percebem, os dias peque­nos, a chuva, a tristeza das árvores, o papel da parede a destingir para dentro da minha mãe, para dentro de mim, o aparta­mento de súbito acanhado, uma vontade de qualquer coisa que não há, sobretudo nos domingos de inverno quando às quatro da tarde acendemos a luz e me apetece morrer. Não morrer, é claro, de uma morte por doença ou assim, simplesmente dei­xar de existir
trucla
como uma lâmpada se funde, desaparecer por completo, sem rastro, nunca ter nascido, não morar num corpo incómodo com braços a mais e pernas a mais e dentes a mais que doem
(a propósito tenho de marcar uma consulta sem falta para a semana que vem)
um corpo ainda por cima com frio, duas camisolas e os joe­lhos encostados ao calorífero, o cabelo que principia a rarear na moleirinha apesar dos tratamentos que leio no jornal e vou comprar à farmácia, umas ampolas caríssimas que não resolvem nada, deixar de existir
trucla
como uma lâmpada se funde sem a minha mãe dar por isso coitada, a minha mãe que a seguir ao falecimento do meu padri­nho voltou para casa com a colecção de borboletas
— O teu tio Fernando deixou-te isto
cinco caixas de vidro com os bichos, de asas abertas, prega­dos em cartões, e o nome a latim por baixo, cinco caixas de insectos coloridos, azuis, amarelos, encarnados, verdes, com pintas e listras e círculos e manchinhas simétricas que à minha mãe faziam pena e eu achava lindos. De forma que no inverno, quando me apetece morrer, vou buscar a colecção de borbole­tas ao armário do meu quarto, ponho-as ao lado umas das outras na mesa do jantar e fico durante horas debruçado para os bichos indiferente à chuva e à tristeza das árvores. A minha mãe ainda protesta do crochet a contar as malhas com a unha
— Sempre gostava de entender a graça que achas a isso
mas como detesta que eu saia por causa das más companhias e das doenças das mulheres, resolve calar-se não vá eu guardar as caixas e descer as escadas
(moramos num terceiro andar)
para a academia de bilhar da avenida, cheia de homens com a unha do mindinho comprida e de senhoras que fumam
(na opinião da minha mãe uma senhora que fuma não pode ser honesta)
e entrar-lhe na sala com uma noiva que lhe fique com as jóias, passe a decidir das refeições e a meta num lar. As jóias não são muitas: o meu pai não era rico, ninguém na nossa famí­lia era rico, e o que ela tem, para somar à aliança, é um anel com uma pedrinha que além de minúscula me parece falsa e um colar de pérolas que se vê logo que o é, demasiado perfeito como as dentaduras postiças. A colecção de borboletas tem a vantagem de nos manter no apartamento aos dois, a mim por­que não tenho tempo de arranjar uma namorada e casar-me e a minha mãe porque, na ideia dela eu, por minha vontade, nunca a meterei numa cave para velhos
(a minha mãe imagina que os velhos são sempre metidos em caves a passarem fome e cheios de percevejos)
no que aliás tem razão visto que gosto dela e nos damos bem. É raro zangarmo-nos, é raro discutirmos, não me queixo da co­mida nem há pó pelos cantos, e se não me apetecesse tanto mor­rer no inverno era uma pessoa feliz. De resto não posso dizer que seja especialmente infeliz: graças a Deus tenho tido saúde
(à parte a queda do cabelo, que seca)
não ganho muito no emprego mas para a vida que levamos e junto com a pensão do meu pai chega perfeitamente se pouparmos um bocadinho na luz, o apartamento é nosso, na pró­xima primavera fechamos a varanda da cozinha e fica uma mar­quise óptima para passar a ferro
(gosto do cheiro da roupa, daquele cheiro de humidade quente de quando se passa a ferro)
e mal o papel da parede começa a destingir para dentro de mim vou num pulo ao meu quarto e trago a colecção de bor­boletas do meu tio Fernando, o irmão da minha mãe que mor­reu de um aneurisma faz em janeiro três anos. Era solteiro como eu mas morava sozinho e de tempos a tempos aos sábados, como nós moramos perto do campo da bola, vinha almoçar connosco antes dos jogos. No fim do almoço enquanto a minha mãe lhe servia o café perguntava-me com um sorriso que nunca percebi
— Ensinas-me a voar?
eu com cara de parvo a achá-lo maluco, a minha mãe des­confiada
(a minha mãe desconfia de tudo)
— Que história é essa Fernando?
o meu tio Fernando, muito compenetrado, com os beici­nhos em bico para não se queimar e mão espalmada no peito para não sujar a gravata
(a minha mãe diz que as nódoas de café são um tormento)
— Todas as crianças sabem voar Madalena
e eu, agarrado aos móveis com medo de voar sem querer pelo corredor fora. Acho que foi por ter vontade de voar que o meu tio Fernando
(o meu tio Fernando trabalhava num banco a trocar dinheiro às pessoas)
começou sem dizer a ninguém a colecção de borboletas. Se calhar também o inverno era difícil para ele
(os dias pequenos, a chuva, uma vontade de qualquer coisa que não há)
se calhar também aos domingos, como não havia jogos, lhe apetecia morrer. Morava em duas assoalhadas escuríssimas com móveis parecidos com urnas e comia sozinho diante do jornal, ou seja com o jornal entalado entre o prato e o jarro da água (o médico proibiu-lhe o vinho derivado às artérias) e não me admira que lhe apetecesse morrer. Há alturas em que penso que toda a gente
(mesmo as que coleccionam borboletas)
tem vontade de morrer, e que se nos ensinassem a voar nos íamos logo embora para outro país qualquer, esses países sem domingos de inverno
(deve haver com certeza países sem domingos de inverno)
onde não é preciso fazer crochet toda a tarde nem olhar cai­xas com bichos porque se é feliz.
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas
.

12 de fevereiro de 2005

Meu amor

Lembras-te daquela vez em que não fomos a Samarcanda? Escolhe­mos a melhor época do ano, o princípio do Outono, os bosques e as matas à volta de Samarcanda, quando as colinas áridas começam a descer e a vegetação a espreitar, incendeiam-se de folhas vermelhas e de um amarelo ocre, e o clima é ameno, dizia o nosso guia, lembras-te do nosso guia?, comprámo-lo numa pequena livraria da íle Saint-Louis, Ulysse, especializada em livros de viagens, a maior parte dos quais usados e muitas vezes sublinhados ou anotados pelas pessoas que tinham feito aquelas viagens deixando nos guias as suas anotações, aliás muito úteis, cipo: «pensão a recomendar», ou «estrada a evitar, perigosa», ou então neste armazém vendem-se tapetes de qualidade a preços acessíveis», ou ainda «cuidado, este restaurante aldraba na conta». (...)
De facto, a viagem a não fazer era mesmo a Samarcanda. Guardo uma recordação inesquecível dessa viagem, e tão nítida, tão rica de por­menores, como só as coisas realmente vividas na imaginação nos podem oferecer. Sabes, eu andava a ler um filósofo francês que observou até que ponto o imaginário obedece a leis tão rigorosas como as do real. E o imaginário, meu amor, não tem nada a ver com o ilusório, que é uma coisa completamente diferente. Samuel Butler era de facto um tipo ex­traordinário, não só pelos fabulosos romances que escreveu mas pela sua maneira de ver a vida. Ocorre-me agora uma frase sua: «Posso tole­rar a mentira, mas não suporto a imprecisão.» Mentiras trocámos nós muitas na nossa vida, meu amor, e aceitámo-las todas de parte a parte, de tal modo eram realmente verdadeiras no nosso imaginário ansioso. Mas houve uma delas, ou, se preferires, houve uma mentira múltipla em torno de um mesmo facto real, que nos perdeu para sempre, porque era uma mentira falsa, porque era o ilusório, e o ilusório é necessariamente impreciso, existe apenas no nevoeiro da nossa auto-ilusão. Nos nossos so­nhos sempre fizemos como Dom Quixote, que leva o seu imaginário até ao fim, um imaginário que pressupõe a loucura, desde que seja exacta: exacta na topografia da paisagem real que ele atravessa com a sua imagi­nação. Alguma vez pensaste que o Dom Quixote é um romance realista? E no entanto, um belo dia, transformas-te subitamente de Dom Quixote em Madame Bovary, com a sua incapacidade para definir os contornos daquilo que desejava, para decifrar o lugar onde se encontrava, para contar o dinheiro que gastava, para perceber as asneiras que fazia: eram coisas reais e tudo aquilo lhe parecia ar, e não o contrário. A diferença é enorme: não se pode dizer «estive numa cidade longe daqui», ou «era um homem solícito que me fazia companhia», ou «não creio que fosse amor, antes uma espécie de ternura». Não se podem dizer coisas destas, meu amor, ou pelo menos não mas podias dizer a mim, porque se tratava de uma ilusão tua, de uma pobre e patética ilusão apenas tua: aquela cidade tinha um nome concreto e não ficava tão longe como isso, e ele era apenas um homem de certa idade com quem tu ias para a cama. Era o teu amante que julgavas feito de ar, mas que era de carne e osso.
É por isso que te recordo a viagem que não fizemos a Samarcanda, porque essa sim, essa foi verdadeira e nossa e farta e vivida. E por isso continuo o nosso jogo. Como diz aquele filósofo de que te falei, a me­mória reproduz o vivido, é precisa, exacta, implacável, mas não produz nada de novo: é este o seu limite. A imaginação, em contrapartida, não pode evocar nada, porque não pode recordar, e é este o seu limite: mas em compensação produz o novo, qualquer coisa que não existia, que nunca existiu. Por isso mesmo recorro a estas duas faculdades capazes de se ajudarem mutuamente e volto a recordar aquela nossa viagem a Samarcanda que não fizemos mas que imaginámos até ao mais exacto pormenor.


António Tabucchi, Está a Fazer-se Cada Vez Mais Tarde

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10 de fevereiro de 2005


Bertolt Brecht (1898-1956)


Mack the Knife

Oh, the shark has pretty teeth, dear
And he shows them pearly white.
Just a jack knife has Macheath, dear
And he keeps it out of sight.

When the shark bites with his teeth, dear
Scarlet billows start to spread.
Fancy gloves, though, wears Macheath, dear
So there's not a trace of red.

On the side-walk Sunday morning
Lies a body oozing life;
Someone's sneaking 'round the corner.
Is that someone Mack the Knife?

From a tugboat by the river
A cement bag's dropping down;
The cement's just for the weight, dear.
Bet you Mackie's back in town.

Louie Miller disappeared, dear
After drawing out his cash;
And Macheath spends like a sailor.
Did our boy do something rash?

Sukey Tawdry, Jenny Diver,
Polly Peachum, Lucy Brown
Oh, the line forms on the right, dear
Now that Mackie's back in town.

Bertolt Brecht

http://www.straightdope.com/mailbag/mmacktheknife.html
http://www.bigtexaudio.net/audio.htm

9 de fevereiro de 2005


Alice Walker (1944)


Escuta, Deus gos­ta de tudo o que tu gostas — e de uma quantidade de coisas que tu não gostas. Mas, mais do que tudo, Deus gosta de ad­miração.
Estás a dizer que Deus é vaidoso? pergunto.
Ná, diz ela. Não vaidoso, apenas quer partilhar uma coisa boa. Acho que Deus fica lixado quando passas pela cor púr­pura num campo qualquer e não dás por isso.
Que faz ele quando fica lixado? pergunto.
Oh, faz qualquer outra coisa. As pessoas acham que agra­dar a Deus é só o que Deus quer, mas qualquer idiota que viva neste mundo pode ver que ele também está sempre a tentar agradar-nos.
Sim? pergunto eu.
Sim, diz ela. Está sempre a fazer-nos pequenas surpresas quando menos esperamos.
Queres dizer que Ele quer ser amado, exactamente como diz a Bíblia.
Sim, Celie. Tudo neste mundo quer ser amado. Nós canta­mos e dançamos, fazemos boquinhas e damos ramos de flo­res, para ver se gostam de nós. Nunca viste que as árvores fa­zem tudo o que fazemos, menos andar, para atraírem, a nossa atenção?

Alice Walker, A Cor Púrpura
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8 de fevereiro de 2005


Franz Marc(1880-1916), Fighting Forms

7 de fevereiro de 2005


Yvette K.Centeno (1940)
Fotografia de Graça Sarsfield


Morre-se sempre sozinho. Agarramo-nos e não fica­mos presos a ninguém e a nada. Partimos para longe do nosso próprio ser tão irreal tão pouco verdadeiro como se de facto não tivesse existido senão de brincadeira. Como se brinca em criança. E crescemos e continuamos a brincar e a ser brinca­dos mas não damos por isso porque a infância ficou mais para trás num canto perdido da memória. E no entanto é só como crianças que somos verdadeiros, brincadores brinquedos de momento mudando de momento real para real efémero concreto passageiro. Ser — é o mesmo problema todo o tempo. That is the question. To die, to sleep. No more. To sleep. Per-chance to dream. Os homens vão mudando mas os problemas continuam sempre sempre a ser os mesmos. És como um peixe, dizia ela a Jörg. E Jörg sorria. Tudo o que ela pudesse dizer não tinha significado, não tinha importância, porque não havia importância no mundo. Havia coisas. Havia pessoas. Campos. Cidades. Belas manhãs. Ventos de praia. Súbitas flores marinhas e súbitos animais. Pequenos e grandes amores necessários. Sonhos de paragens longínquas de descanso e de felicidade. Sonhos já quase realidade. Já se era praticamente feliz em todo o mundo, dizia ele.
— Feliz? Em todo o mundo? Estás a falar a sério? Que inge­nuidade. Gostava de ser igual a ti, disse-lhe Vera. Fazer parte de ti, do teu ser satisfeito, sem perguntas sem respostas sem problemas e sem inquietações. Principalmente sem inquieta­ções, sem atracção de abismos que me assustam. Tenho medo de mim porque sou eu o meu maior abismo e devo ter no fundo uma verdade. Uma pequena parcela de verdade. Um pequeno reflexo ou qualquer coisa no género que explique. Eis que Deus vos dará um sinal, disse Isaías. Mas se deu não o pude entender.
Jörg levou-a para junto da árvore, marco isolado verde-
-escuro, a única que havia em todo o campo. Ora, já se vivia antes disso e agora continua-se a viver na mesma. Para quê a confusão de esperas perguntas e sinais. Vera olhou-o. Lembras-
-me um jovem deus marítimo perdido por engano neste campo. Jörg riu mas não respondeu nada. Vera continuou: de que me serve tanta lucidez. A minha lógica não funciona nos outros. Acreditas no amor?
— Só acredito nas pessoas e nos momentos que as pessoas passam juntas. O resto não importa. Se se amam ou não, já não importa. Vera disse-lhe que ele era já uma espécie de homem do futuro, um cyborg gelado como um peixe, com a boca selada e todo o interior do corpo transformado, podendo mecanica­mente controlar-se, apto a grandes viagens interplanetárias. A monstruosidade a que a Ciência racional e progressivamente nos permite chegar é quase assustadora. Há um estranho frio no homem do futuro, uma falta de sensibilidade que talvez se chame perfeição mas que tem qualquer coisa de morte e de silêncio que eu não sei bem explicar.

Yvette K. Centeno, “As Palavras Que Pena”

6 de fevereiro de 2005


António José Forte (1931-1988)



Poema

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte


Arthur Wardle (1864-1949) Moon Kissed:Endymion
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1 de fevereiro de 2005


Fernando Assis Pacheco (1937-1995)


Chula das Fogueiras

Embora me escutasses nada saberás de mim
e fosses à janela

e embora olhasses não me vês que passo
e digas um adeus pequeno

e embora às vezes já sentisses náusea
e afinal te inclinas

e embora seca embora secamente
e finjo que não ligo

e embora as baças ténues luzes das
e eu por timidez sempre apagado

e embora as marés-vivas batendo
e amámos nisso o Verão

e embora lerda a caneta se apure
e tu não entendesses nada

não entendesses nada

Fernando Assis Pacheco

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