31 de maio de 2006


Walt Whitman (1819-1892)


Pleno de vida agora

Pleno de vida agora, concreto, visível,
Eu, aos quarenta anos de idade e aos oitenta e três dos Estados Unidos,
A ti que viverás dentro de um século ou vários séculos mais,
A ti, que ainda não nasceste, me dirijo, procurando-te.

Quando leres isto, eu que era visível, serei invisível,
Agora és tu, concreto, visível, aquele que me lê, aquele que me procura,
Imagino quanto serias feliz se eu estivesse a teu lado e fosse teu companheiro,
Sê tão feliz como se eu estivesse contigo. (Não penses que não estou agora junto a ti.)

Walt Whitman, Cálamo

(tradução de José Agostinho Baptista)


30 de maio de 2006

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Countee Cullen (1903-1946)

The Wise


The WiseDead men are wisest, for they know
How far the roots of flowers go,
How long a seed must rot to grow.

Dead men alone bear frost and rain
On throbless heart and heatless brain,
And feel no stir of joy or pain.

Dead men alone are satiate;
They sleep and dream and have no weight,
To curb their rest, of love or hate.

Strange, men should flee their company,
Or think me strange who long to be
Wrapped in their cool immunity.

Countee Cullen

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20 de maio de 2006


Maria Teresa Horta (1937)


Poema sobre a recusa

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

Maria Teresa Horta

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19 de maio de 2006


Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)


Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive
-Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E sé me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

Mário de Sá-Carneiro

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11 de maio de 2006

Salvador Dalí, «A Persistência da Memória»
Salvador Dalí (1904-1989)
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9 de maio de 2006


Charles Simic (1938)

The Oldest Child

The night still frightens you.
You know it is interminable
And of vast, unimaginable dimensions.
"That's because His insomnia is permanent,"
You've read some mystic say.
Is it the point of His schoolboy's compass
That pricks your heart?

Somewhere perhaps the lovers lie
Under the dark cypress trees,
Trembling with happiness,
But here there's only your beard of many days
And a night moth shivering
Under your hand pressed against your chest.

Oldest child, Prometheus
Of some cold, cold fire you can't even name
For which you're serving slow time
With that night moth's terror for company.

Charles Simic

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7 de maio de 2006


Archibald MacLeish (1892-1982)



Ars Poetica


A poem should be palpable and mute
As a globed fruit,

Dumb
As old medallions to the thumb,

Silent as the sleeve-worn stone
Of casement ledges where the moss has grown--

A poem should be wordless
As the flight of birds.

*

A poem should be motionless in time
As the moon climbs,

Leaving, as the moon releases
Twig by twig the night-entangled trees,

Leaving, as the moon behind the winter leaves,
Memory by memory the mind--

A poem should be motionless in time
As the moon climbs.

*

A poem should be equal to:
Not true.

For all the history of grief
An empty doorway and a maple leaf.

For love
The leaning grasses and two lights above the sea--

A poem should not mean
But be.

Archibald MacLeish
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6 de maio de 2006


Amadeu Baptista (1953)


FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO

Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.

Amadeu Baptista

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3 de maio de 2006

tenho uma estátua fluorescente da virgem
maria que me dá confiança e brilha à noite.
tenho os joelhos magoados. o calvário dos fiéis
devia ser menos árduo.
tenho trezentos e sessenta e cinco santos numa
caixa calendário daquelas em que cada dia
tem um chocolate.
tenho um lencinho branco onde limpo as
lágrimas enquanto assisto a uma vigília via tv
depois da minha última ceia de hoje.
às vezes quando o vapor é muito, tenho o
salvador no espelho. deito-me de consciência
limpa, não me esqueci das velinhas, nem de
deixar a moedinha na caixa, e o meu "livro de
orações" tem um delicioso cheiro a mofo.
dormirei o sono dos justos e talvez não acorde
quando o galo da minha vizinha cantar três
vezes e o meu senhorio o tentar apedrejar.
sinto-me bem e deus queira que consiga não
me masturbar.
ámen.

_nuno marques

[A NAIFA -- 3 minutos antes de a maré encher]

1 de maio de 2006

Jules Breton, «Asleep in the woods»
Jules Breton (1827-1906)