28 de janeiro de 2012


Sandra. Ontem à meia-noite começou a Queima das Fitas na nossa cidade do Sol. E o primeiro número da festa foi a serenata na Sé Velha. Transmitiram-na pela TV e eu ouvi-a até ao fim. Mas a certa altura e de súbito a imagem de todo o largo coalhado de gente recuou um pouco para uma outra imagem antiga se lhe sobrepor. Havias tu agora nessa imagem e eu soube porquê. Estávamos no pátio da Universidade e a agi­tação da festa chegava até lá. Irreprimivelmente então eu perguntei-te e se fôssemostambém ouvir? Ficaste em silêncio e eu pen­sei que ias ceder. Vou-te buscar à hora a casa e é só descer a rua do Norte para che­garmos ao largo. Foi quando me fitaste com o teu olhar triste e um pouco crispado — achas que isso tem algum sentido? (...) Mas ontem à meia-noite convidei-te outra vez e tu vieste. Tenho todo o teu destino na minha mão para o ter quando o não tiver. Se fôsse­mos ouvir? e tomo-te a mão e tu vens. Olho de novo aquela massa de gente e estamos lá. Nas escadas da Sé, escalonados pelo degraus, estão rapazes e raparigas de que só se vêem os rostos em destaque no traje pre­to de estudantes. E ao alto, os que irão can­tar e tocar — se nos sentássemos num degrau? mas tu preferes o largo coalhado de gente onde a música ressoa com maior amplidão. Subitamente retine a todo o espa­ço do largo um timbre de guitarra. E logo o silêncio se estendeu por toda aquela massa humana. Tomo a tua mão, os dedos entrela­çados, e escuto. Escutamos os dois, unidos como dizer-te? na transcendência de nós, na transfiguração de tudo o que pensássemos, numa legenda antiquíssima que nos levasse consigo. O céu estava limpo e viam-se as estrelas. Toda a iluminação do largo tinha sido apagada e viam-se melhor assim. E havia em nós um movimento alado para nos dissiparmos entre elas. Apertei-te a mão e tu apertaste a minha e eu tive a evidência de que nada nos podia separar. Agora um estu­dante cantava uma balada— «morrer é pas­sar um dia todo inteiro sem te ver». Como é triste pensá-lo. Sem te ver.
Vergílio Ferreira, Cartas a Sandra








25 de janeiro de 2012





Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

Ricardo Reis

21 de janeiro de 2012


O meu projecto de morrer é o meu ofício
Esperar é um modo de chegares
Um modo de te amar dentro do tempo



Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais





15 de janeiro de 2012




Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida:
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!


Florbela Espanca