30 de agosto de 2011




O teu sorriso



Tira-me o pão, se quiseres,

tira-me o ar,

mas não me tires o teu sorriso.



Não me tires a rosa,

a lança que desfolhas,

a água que de súbito

brota da tua alegria,

a repentina onda

de prata que em ti nasce.



A minha luta é dura e regresso

com os olhos cansados,

às vezes por ver

que a terra não muda,

mas ao entrar, o teu sorriso

sobe ao céu a procurar-me

e abre-me

todas as portas da vida.


Meu amor, nos momentos

mais escuros solta

o teu sorriso e se de súbito

vires que o meu sangue mancha

as pedras da rua,

ri, porque o teu riso

será para as minhas mãos

como uma espada fresca.


À beira do mar, no outono,

o teu sorriso deve erguer

a sua cascata de espuma,

e na primavera, amor,

quero o teu sorriso como

a flor que esperava,

a flor azul, a rosa

da minha pátria sonora.


Ri-te da noite,

do dia, da lua,

ri-te das ruas

tortas da ilha,

ri-te deste grosseiro

rapaz que te ama,

mas quando abro

os olhos e os fecho,

quando meus passos vão,

quando voltam meus passos,

nega-me o pão, o ar,

a luz, a primavera,

mas nunca o teu sorriso,

porque então morreria.



Pablo Neruda, Os versos do capitão
 


28 de agosto de 2011
































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Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".


O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.


Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.


Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi já .

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.


Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.

A minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.


Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos
.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta a tive em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.


Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.



Pablo Neruda, Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

27 de agosto de 2011






Vai alta no céu a lua da Primavera

Penso em ti e dentro de mim estou completo.



Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.

Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.



Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,

E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.

Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,

Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,

Isso será uma alegria e uma verdade para mim.




Alberto Caeiro, O Pastor Amoroso

20 de agosto de 2011





Tanto de meu estado me acho incerto,
Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Num'hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar ũa hora.

Se me pergunta alguém, porque assi ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.


Luís de Camões




12 de agosto de 2011





Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!

Fernando Pessoa, 23-10-1931