Às vezes, encontro-me nas palavras dos outros. Mais raramente, nas minhas. Por pura coincidência. Em pura coincidência.
21 de fevereiro de 2007
W. H. Auden (1907-1973)
Miranda
My Dear One is mine as mirrors are lonely,
And the poor and sad are real to the good king,
And the high green hill sits always by the sea.
Up jumped the Black Man behind the elder tree,
Turned a somersault and ran away waving;
My Dear One is mine as mirrors are lonely.
The Witch gave a squawk; her venomous body
Melted into light as water leaves a spring,
And the high green hill sits always by the sea.
At his crossroads, too, the Ancient prayed for me,
Down his wasted cheek tears of joy were running:
My Dear One is mine as mirrors are lonely.
He kissed me awake and no one was sorry;
The sun shone on sails, eyes, pebbles, anything,
And the high green hill sits always by the sea.
So to remember our changing garden, we
Are linked as children in a circle dancing:
My Dear One is mine as mirrors are lonely,
And the high green hill sits always by the sea.
W. H. Auden
11 de fevereiro de 2007
Else Lasker-Schüler (1869-1945)
Parting
But you never came with the evening —
I sat waiting in a shawl of stars...
Whenever there was a knocking at my door,
It was my own heart.
It now hangs on every doorpost,
Even on yours;
Between the ferns the fireroses expireI
n the withering garland.
I dyed the heaven blackberry
With my heartblood.
But you never came with the evening —
... I stood waiting in golden shoes.
Else Lasker-Schüler
versão inglesa de A. Durchschlag e J. Litman-Demeestere
4 de fevereiro de 2007
João de Melo (1949)
Eu sou talvez de todos o mais sóbrio. Bebo só até ao limite do meu próprio desejo do vinho. Porque o vinho alegra, aviva e expõe os estados feridos da minha alma; ele gira e corre no meu sangue como a máquina dos sonhos que se movem ocultos no meu conhecimento de mim; e alivia e liberta o meu coração dos verbos proibidos e dos pensamentos frios. O vinho sou eu e os meus inofensivos delitos. Sabe-o bem a minha mulher; sabe-o no momento em que meto a chave à porta e entro em casa. Nunca me viu cambalear, nem decerto me ouviu dizer grandes disparates. Mas basta-lhe pousar os olhos nos meus olhos e os lábios nos meus lábios: ninguém como ela conhece a razão de ser do vinho no meu hálito e no meu olhar; ninguém como ela sabe que a tragédia de certos homens consiste precisamente em nunca terem estado à altura de tragédia nenhuma; ninguém como a minha mulher compreende quão importante é para mim mudar de vez em quando o meu mundo, soltar o pássaro que em mim deixou de cantar, abrir-me em quilha, rasgar a vela do meu barco e erguer ao vento do mar impossível os destinos da alma; ninguém como ela até hoje percebeu o que sofre um homem que não sofre, um homem que se despediu de todos e de cada um dos seus sonhos de homem, no tempo do seu país — porque só ela, minha mulher, me acompanha à cama; só ela vê como me deixo cair não ao comprido, mas de atravessado na nossa cama de casal, à maneira de um desesperado que tivesse naufragado à vista da praia. Só ela me despe, me enfia o pijama e põe a direito na cama; só ela me tapa com um lençol e dois cobertores para que eu possa dormir sem correr o risco de gelar de madrugada; e só ela volta — então mais só do que nunca — para o silêncio da noite e da cozinha, a fim de se sentar à mesa, olhar as horas paradas no relógio da parede e (comigo ausente da sua vida) comer pão com lágrimas, beber leite frio com cevada e ficar para ali, hora após hora, a tentar desistir da vida, de mim, da minha mágoa de homem nascido para nada, ainda que sem o conseguir — e a chorar por ela e por mim, mas também para nada.
João de Melo, As Coisas da Alma