26 de novembro de 2008



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Homenagem a Ricardo Reis


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Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.


Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.


Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.


Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo


Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual


23 de novembro de 2008







Elogio da Distância


Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.




Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:




Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.




Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.




Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.




Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Paul Celan, Papoila e Memória
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

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14 de novembro de 2008


Amadeo de Souza-Cardoso, «Entrada»
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7 de novembro de 2008





É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.


É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.


O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.


O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.


O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.


Cecília Meireles


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4 de novembro de 2008



This Happened

A student, a young woman, in a fourth-floor hallway of her lycée,
perched on the ledge of an open window chatting with friends between classes;
a teacher passes and chides her, Be careful, you might fall, almost banteringly chides her, You might fall,
and the young woman, eighteen, a girl really, though she wouldn't think that,
as brilliant as she is, first in her class, and Beautiful, too, she's often told,
smiles back, and leans into the open window, which wouldn't even be open if it were winter, if it were winter someone would have closed it (Close it!),
leans into the window, farther, still smiling, farther and farther,
though it takes less time than this, really an instant, and lets herself fall. Herself fall.

A casual impulse, a fancy, never thought of until now, hardly thought of even now... No, more than impulse or fancy, the girl knows what she's doing,
the girl means something, the girl means to mean, because, it occurs to her in that instant, that beautiful or not, bright yes or no,
she's not who she is, she's not the person she is, and the reason, she suddenly knows,
is that there's been so much premeditation where she is, so much plotting and planning,
there's hardly a person where she is, or if there is, it's not her, or not wholly her,
it's a self inhabited, lived in by her, and seemingly even as she thinks it she knows what's been missing: grace, not premeditation but grace,
a kind of being in the world spontaneously, with grace.

Weightfully upon me was the world.
Weightfully this self which graced the world yet never wholly itself.
Weightfully this self which weighed upon me,
the release from which is what I desire and what I achieve.
And the girl remembers, in this infinite instant already so many times divided, the sadness she felt once, hardly knowing she felt it, merely to inhabit herself.
Yes, the girl falls, absurd to fall, even the earth with its compulsion to take unto itself all that falls must know that falling is absurd, yet the falling girl isn't myself,
or she is myself, but a self I took of my own volition unto myself.
Forever. With grace. This happened.


C. K. Williams




1 de novembro de 2008



Não faço a menor ideia de como nasce o amor e tenho imenso medo de descobrir como ele acaba.
Esta ideia nem parece minha, mas aconteceu-me agora mesmo, depois de assistir a uma cena esquisita aqui dentro de minha casa.
Na minha casa acontecem muitas cenas esquisitas, vais ficar a conhecê-las todas, portanto, aguenta-te e observa.
Está ali uma mulher a chorar, tem que se lhe diga, mas já revelo quem ela é. Agora quero que saibas quem eu sou.
Chamo-me Maria Ana. Isso mesmo, Maria Ana e não Mariana, há muita gente que se engana e eu passo a vida a corrigir. O nome foi escolhido pela minha avó Lupita, que se chama na realidade Guadalupe, é um bocado gorda, um grande bocado louca e ainda por cima é uma espanhola que fala muito. Vive em Madrid ao lado de um museu que se chama Prado e quando eu era pequena julgava que era um museu sobre vacas e ovelhas, pois essas andam sempre no prado, com as moscas, os cães e os pastores, e afinal é um museu dedicado a obras de pintura, é mesmo uma das maiores galerias do Mundo e expõe obras que foram pintadas entre os séculos XV e XIX, fui lá com a minha avó Lupita que gosta muito de ir a toda a parte e adorei e conheci Goya, as pinturas dele - e Goya é um dos maiores pintores de Espanha e isso.
Chamo-me Maria Ana - e não Mariana. Repito, porque quase toda a gente troca o meu nome.

Alexandre Honrado, A família que nao cabia dentro de casa
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