30 de julho de 2005


Emily Brontë (1818-1848)


Não sei como explicá-lo, mas certamente que tu e toda a gente têm a noção de que existe, ou deveria existir, um outro eu para além de nós próprios. Para que serviria eu ter sido criada, se apenas me resumisse a isto? Os meus grandes desgostos neste mundo foram os desgostos do Heathcliff, e eu acompanhei e senti cada um deles desde o início; é ele que me mantém viva. Se tudo o mais perecesse e ele ficasse, eu continuaria, mesmo assim, a existir; e, se tudo o mais ficasse e ele fosse aniquilado, o universo tornar-se-ia para mim numa vastidão desconhecida, a que eu não teria a sensação de pertencer. O meu amor pelo Linton é como a folhagem dos bosques: transformar-se-á com o tempo, sei-o bem, como as árvores se transformam com o Inverno. Mas o meu amor por Heathcliff é como as penedias que nos sustentam: podem não ser um deleite para os olhos, mas são imprescindíveis. Nelly, eu sou o Heathcliff. Ele está sempre, sempre, no meu pensamento. Não por prazer, tal como eu não sou um prazer para mim própria, mas como parte de mim mesma, como eu própria. Portanto, não voltes a falar na nossa separação, pois é algo de impraticável, e...

Emily Brontë, O Alto dos Vendavais
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993
.

28 de julho de 2005


Jim Davis (1945)


24 de julho de 2005


Alexandre Dumas (1802-1870)


Alexandre Dumas recebia à linha nos romances que publicava em episódios e, por isso, era muitas vezes levado a aumentar o número de linhas, para ganhar um pouco mais. No capítulo XI de Os Três Mosqueteiros (ao qual voltaremos noutra conferência), d'Artagnan encontra a amada Constance Bonacieux, desconfia de que lhe é infiel e tenta descobrir por que se encontra ela de noite próximo da casa de Aramis. Eis uma parte, e só uma parte, do diálogo:

— Sem dúvida; Aramis é um dos meus melhores amigos.
— Aramis! Que quereis dizer?
— Então, não me digais que não conheceis Aramis...
— É a primeira vez que oiço pronunciar esse nome.
— É também a primeira que vindes a esta casa?
— Sem dúvida.
— E ignoráveis que era habitada por um homem?
— Ignorava.
— Por um mosqueteiro?
— Claro.
— Não foi portanto a ele que viestes procurar?
— De modo nenhum. Aliás, como bem vistes, a pessoa com quem falei era uma mulher.
— É verdade; mas essa mulher é uma amiga de Aramis.
— Não sei nada a tal respeito.
— Uma vez que mora com ele.
— Não tenho nada com isso.
— Mas quem é ela?
— Oh, esse é o meu segredo!
— Querida Sr.ª Bonacieux, sois encantadora; mas ao mesmo tempo sois a mulher mais misteriosa...
— E isso prejudica-me?
— Não, pelo contrário, torna-vos adorável.
— Então, dai-me o braço.
— Com muito prazer. E agora?
— E agora acompanhai-me.
— Aonde?
— Aonde vou.
— Mas aonde ides?
— Vê-lo-eis, pois deixar-me-eis à porta.
— Deverei esperar-vos?
— Seria útil.
— Regressareis, portanto, sozinha?
— Talvez sim e talvez não...
— Mas a pessoa que vos acompanhará depois será homem ou mulher?
— Por ora não sei.
— Sabê-lo-ei eu!
— Como?
— Esperar-vos-ei para vos ver sair.
— Nesse caso, adeus!
— Que dizeis?
— Que não preciso de vós.
— Mas pedistes-me...
— Pedi a ajuda de um gentil-homem e não a vigilância de um espião.
— A palavra é um pouco dura!
— Como se chamam aqueles que seguem as pessoas sem elas quererem?
— Indiscretos.
— A palavra é demasiado suave.
— Pronto, senhora, já vejo que se tem de fazer tudo o que quereis.
— Por que vos privastes do mérito de o fazer imediatamente?
— Não dais a ninguém o direito de se arrepender?
— E vós arrependei-vos de verdade?
— Nem eu próprio já sei. Mas o que sei é que vos prometo fazer tudo o que desejardes, se me deixardes acompanhar-vos aonde ides.
— E deixar-me-eis depois?
— Sim.
— Sem me espiardes à saída?
— Sim.
— Palavra de honra?
— Palavra de gentil-homem!
— Dai-me o braço e vamos então.

Umberto Eco, Seis Passeios nos Bosques da Ficção
Lisboa, Difel, 1997.



Robert Graves (1895-1985)


I, Tiberius Claudius Drusus Nero Germanicus This-that-and-the-other (for I shall not trouble you yet with all my titles) who was once, and not so long ago either, known to my friends and relatives and associates as “Claudius the Idiot”, or “That Claudius”, or “Claudius the Stammerer”, or “Clau-Clau-Claudius” or at best as “Poor Uncle Claudius”, am now about to write this strange history of my life; starting from my earliest childhood and continuing year by year until I reach the fateful point of change where, some eight years ago, at the age of fifty-one, I suddenly found myself caught in what I may call the “golden predicament” from which I have never since become disentangled.

This is not by all means my first book: in fact literature, and especially the writing of history — which as a young man I studied here at Rome under the best contemporary masters — was, until the change came, my sole profession and interest for more than thirty-five years. My readers must not therefore be surprised at my practised style: it is indeed Claudius himself who is writing this book, and no mere secretary of his, and not one of those official annalists, either, to whom public men are in the habit of communicating their recollections, in the hope that elegant writing will eke out meagreness of subject-matter and flattery soften vices. In the present work, I swear by all the Gods, I am my own mere secretary, and my own official annalist: I am writing with my own hand, and what favour can I hope to win from myself by flattery? I may add that this is not the first history of my own life that I have written. I once wrote another, in eight volumes, as a contribution to the city archives. It was a dull affair, by which I set little store, and only written in response to public request. To be frank, I was extremely busy with other matters during its composition, which was two years ago. I dictated most of the first volume to a Greek secretary of mine and told him to alter nothing as he wrote (except, where necessary, for the balance of the sentences, or to remove contradictions or repetitions). But I admit that nearly all the second half of the work, and some chapters at least of the first, were composed by this same fellow, Polybius (whom I had named myself, when a slave-boy, after the famous historian) from material that I gave him. And he modelled his style so accurately on mine that, really, when he had done, nobody could have guessed what was mine and what was his.

It was a dull book, I repeat. I was in no position to criticize the Emperor Augustus, who was my maternal grand-uncle, or his third and last wife, Livia Augusta, who was my grandmother, because they had both benn officially deified and I was connected in a priestly capacity with their cults; and though I could have pretty sharply criticized Augustus’s two unworthy Imperial successors, I refrained for decency’s sake. It would have been unjust to exculpate Livia, and Augustus himself in so far as he deferred to that remarkable and — let me say at once — abominable woman, while telling the truth about the other two, whose memories were not similarly protected by religious awe.

I let it be a dull book, recording merely such uncontroversial facts as, for example, that So-and-so married So-and-so, the daughter of Such-and-such who had this or that number of public honours to his credit, but not mentioning the political reasons for the marriage nor the behind-scene bargaining between the families. Or I would write that So-and-so died suddenly, after eating a dish of African figs, but say nothing of poison, or to whose advantage the death proved to be, unless the facts were supported by a verdict of the Criminal Courts. I told no lies, but neither did I tell the truth in the sense that I mean to tell it here. When I consulted this book to-day in the Apollo Library on the Palatine Hill, to refresh my memory for certain particulars of date, I was interested to come across passages in the public chapters which I could have sworn I had written or dictated, the style was so peculiarly my own, and yet which I had no recollection of writing or dictating. If they were by Polybius they were a wonderfully clever piece of mimicry (he had my other histories to study, I admit), but if they were really by myself then my memory is even worse than my enemies declare it to be. Reading over what I have just put down I see that I must be rather exciting than disarming suspicion, first as to my sole authorship of what follows, next as to my integrity as an historian, and finally as to my memory for facts. But I shall let it stand; it is myself writing as I feel, and as the history proceeds the reader will be the more ready to believe that I am hiding nothing — so much being to my discredit.

This is a confidential history. But who, it may be asked, are my confidants? My answer is: it is addressed to posterity. I do not mean my great-grandchildren, or my great-great-grandchildren: I mean an extremely remote posterity. Yet my hope is that you, my eventual readers of a hundred generations ahead, or more, will feel yourselves spoken to, as if by a contemporary: as often Herodotus and Thucydides, long dead, seem to speak to me. And why do I specify so extremely remote a posterity as that? I shall explain.
[...]

Robert Graves, I Claudius

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos — a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.

[...]

Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anónimo de todos os sentimentos. Nestas horas de mágoa subtil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.

Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias — está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma — como única realidade deste momento — há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego
Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.


23 de julho de 2005

The heart asks pleasure first,
And then, excuse from pain;
And then, those little anodynes
That deaden suffering;

And then, to go to sleep;
And then, if it should be
The will of its Inquisitor,
The liberty to die.

Emily Dickinson

20 de julho de 2005


Gastão Cruz (1941)


7

Tudo o que puderes dizer-me
agora que ainda não é noite
enquanto ainda não se espera
a solidão mas talvez já a
morte agora que passamos
o rio sem que a noite
já sem a noite
atravessamos tudo diz-me tudo
o que subitamente se desprende
de tudo diz-me sem que na voz sem
que o sentido do que dizes seja o que
sentimos na escuridão
do sangue sem que o medo do amor
ou a vida o rio que
passamos a tarde
que sentimos tudo
digam

Gastão Cruz, "Alteração"

.

19 de julho de 2005

Degas, «Danseuses bleues»
Edgar Degas (1834-1917)

18 de julho de 2005


Yevgeny Yevtushenko (1933)



ASSIGNATION

No, No! Believe me!
I’ve come to the wrong place!
I’ve made a god-awful mistake! Even the glass
in my hand’s an accident,
and so’s the gauze glance
of the woman who runs the joint.
"Let’s dance, huh?
You’re pale...
Didn’t get enough sleep?"
And I feel like there’s no place
to hide, but say, anyway, in a rush
"I’ll go get dressed...
No, no...it’s just
that I ended up out of bounds..."
And later, trailing me as I leave:
"This is where booze gets you...
What do you mean, ‘not here’? Right here! Right here every time!
You bug everybody, and you’re so satisfied
with yourself, Zhenichka,
you’ve got a problem."
I shove the frost of my hands
down my pockets, and the streets around are snow,
deep snow. I dive into a cab. Buddy, kick this thing! Behind
the Falcon
there’s a room. They’re supposed to be waiting for me there.
She opens the door,
but what the hell’s wrong with her?
Why the crazy look?
"It’s almost five o’clock.
You sure you couldn’t have come a little later?
Well, forget it. Come on in. Where else could you go now?"
Shall I explode
with a laugh
or maybe with tears?
I tell you I was scribbling doggerel,
but I got lost someplace.
I hide from the eyes. Wavering I move backwards:
"No, no! Believe me! I’ve come to the wrong place!"
Once again the night,
once again snow
and somebody’s insolent song,
and somebody’s clean, pure laughter.
I could do with a cigarette.
In the blizzard Pushkin’s demons flash past,
and their contemptuous, buck-toothed grin
scares me to death.
And the kiosks,
and the drugstores,
and the social security offices
scare me just as much...
No, no! Believe me! I’ve ended up
in the wrong place again...
It’s horrible to live
and even more horrible
not to live...
Ach, this being homeless
like the Wandering Jew...Lord! Now I’ve gotten myself
into the wrong century,
wrong epoch,
geologic era,
wrong number.
The wrong place again.
I’m wrong.
I’ve got it wrong...
I go, slouching my shoulders as I’d do
if I’d lost some bet,
and ah, I know it...everybody knows it...
I can’t pay off.

Yevgeny Yevtushenko
Tradução inglesa de James Dickey e Anthony Kahn

16 de julho de 2005


Mário Dionísio (1916-1995)



ASSOBIANDO À VONTADE

Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas, atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos eléctricos, que tinham sido planeadas quando não havia nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente, ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos passeios das grandes praças havia encontrões. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e não viam remédio senão receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os eléctricos apinhavam-se na linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados até aos estribos e por fora dos estri­bos, atrás, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que saltavam àquela hora apressada­mente das lojas, dos escritórios, das oficinas. Além disso, nos dias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, às cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qual­quer maneira, ver caras conhecidas, cumprimen­tar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa à hora do jantar.
A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas pen­duradas no eléctrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborre­cido. Sobretudo a necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viaja­vam só cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco correctos e onde esses mesmos homenzi­nhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão ati­rar-se uma pessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafus­tava até chegar ao carro? Que fazer senão em­purrar, furar, pisar e barafustar também?
O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens correctos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalhei­ros respeitáveis conseguiam sentar-se.
Nos primeiros momentos de viagem, as pes­soas voltavam-se nos bancos, preocupadas, ten­tando ver se o marido, uma amiga, um filho, não teriam ficado em terra. Os que seguiam de pé ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugar vago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas acomodavam-se o melhor que podiam, punham os braços no ar para livrar os embru­lhos do aperto, fechavam bem os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor pu­xava energicamente o cordão da campainha mui­tas vezes, lotação completa, e o carro arras­tava-se em silêncio.
Os senhores respeitáveis, com compreensível e muda zanga dos companheiros do lado, come­çavam a desdobrar os jornais da tarde e a ler as notícias por alto. As senhoras, visivelmente mal dispostas, compunham os chapéus e as golas dos casacos. Tiravam os espelhinhos da mala e pas­savam tudo em revista: o chapéu, os cabelos, os olhos, os lábios. Era incrível. Uma tinha ficado com o chapéu completamente de banda, outra per­dera uma luva na confusão. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os anéis duma mão e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olha­vam umas para as outras, muito sérias, como quem não repara em nada. Recuperavam pouco a pouco a dignidade que aquele despropósito da subida para o carro evaporara.
Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, de­baixo do grande peso. Silêncio enfim — embora de vez em quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia de querer descer, pelo desdobrar dos jornais, pela voz dos populares, encaixados na plataforma da frente.
Tudo voltara à normalidade. A marcha do carro, a cobrança dos bilhetes, a separação entre as pessoas, que rigorosamente não conseguiam separar-se umas das outras um centímetro que fosse. E, assim, morosamente, por curvas e rec­tas, por ruas e praças, aquele carro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das várias linhas que ligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separa­ção entre a chamada classe média e as camadas mais baixas da população não fora ainda conve­nientemente estabelecida.
Em dada altura, porém, na plataforma de trás levantou-se burburinho. Protestos. Indignação. Cabeças voltaram-se no interior do carro. E viu-se um homenzinho a empurrar toda a gente e a dizer que havia lugares à frente, que o deixassem passar. Em vão lhe asseguravam que não havia lugar nenhum, que não podia passar, que não fosse bruto. O homem empurrava e teimava que havia lugares à frente. Tanto empurrou que fu­rou. Tanto furou que conseguiu entrar no inte­rior do eléctrico, avançou e foi sentar-se num lugar de lado que estava efectivamente vago lá à frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta.
Foi um espanto geral e silencioso. Ninguém tinha reparado no lugar. E menos que ninguém, como é fácil de compreender, a própria senhora opulenta. Todos os atrevidos têm sorte.
O homem, que usava um chapéu coçado e um sobretudo castanho bastante lustroso nas bandas, não se sentou propriamente. Enterrou-se no lu­gar, com as mãos enfiadas pelas algibeiras den­tro. Que sujeito! Devia ser mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalho e da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e reme­xeu-se no lugar, se assim se pode dizer, como quem procura ocupar menos espaço. Na verdade, apenas se instalou melhor. A sua intenção era fazer o homenzinho reparar na inconveniência da atitude que tomara. Mas ele não viu nada disso ou fingiu que não viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente, estendeu os lábios e começou a assobiar. A assobiar muito à vontade no inte­rior do carro!
Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco se­guro, imperceptível quase. Depois, a pouco e pouco, o sujeitinho entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se já em todo o eléctrico. Os passageiros, que tinham recupe­rado com tanto custo a sua dignidade, fingiam que não davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram quando o condutor se dirigiu ao recém-vindo. Ia aconselhá-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o maço dos bilhetes na mão e de alicate espetado, limitou-se a dizer: «O senhor?» O passageiro tirou a mão da algi­beira e, sem deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou que lhe levassem a moeda, recebeu o bilhete e tornou a enfiar a mão pela algibeira dentro. Toda a gente seguia a cena, interessada. Mas, quando o homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaram todas os olhos como se ele afinal não existisse.
O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, com trinados ridí­culos e irritantes. Ninguém sabia o que ele asso­biava. E o homem também não. Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse assim mesmo. Às vezes repetia os sons como um estribilho. Outras vezes, porém, a maior parte das vezes, passava a novas combinações, ora brandas, ora violentas, sem que­rer saber para nada das que ficavam para trás.
As pessoas começavam a olhar umas para as outras à socapa. Já se tinha visto coisa assim? Um ou outro cavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o ho­mem do chapéu coçado e sobretudo castanho, na esperança de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. A senhora opulenta, no auge do espanto, nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadíssima porque, sem ter culpa nenhuma, se en­contrava em plena zona do escândalo. A que uma pessoa está sujeita!
E, no silêncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquele gorjeio ridí­culo não fosse desagradável de todo. Simples­mente, um eléctrico não é o local mais próprio para exibições daquelas. Porque não interferiria o condutor? O condutor era a autoridade do carro. Porque não interferiria? Estava-se a ver. Era tão bom como ele. A verdade, porém, é que não se conhecia nenhum regulamento que impe­disse os passageiros de assobiar. Colados aos vidros do eléctrico, havia papéis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir as janelas durante os meses de Inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios.
De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu coçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos louros e encara­colados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que começou a bater palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segu­rou-lhe as mãos com gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no eléctrico. Uma menina bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhora nova e bonita não antipatizava com o homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia nos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse também a assobiar? No fundo, admirava a sem-cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela própria, uma senhora casada e mãe duma garota de cinco anos, começar a assobiar num eléctrico se lhe apetecesse? Quando era da idade da filha, a se­nhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida com coisas velhas para poder atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave e muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita não deve fazer. Os amigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar. E ela ria, ria, ria até ficar sufocada. A mãe dizia: «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira.» E, quanto mais lho di­ziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir.
De vez em quando, um passageiro saía. A pla­taforma do carro ia-se esvaziando. E, pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio. Os cavalheiros tinham esque­cido os jornais. Algumas senhoras sorriam. Já se vira um disparate assim? Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lá­bios. Sentada num banco de lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a se­nhora bonita pensava em ar livre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozes que tinham ficado den­tro dela: «Uma menina a assobiar, Nini?»
Em dada altura, o homem, sem deixar de asso­biar, levantou-se e puxou o cordão da campainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéu coçado, sobre­tudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferença soberana pelo eléc­trico inteiro. Toda a gente o olhava. Com des­prezo? Com ironia? Com inveja? Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em anda­mento.
As pessoas voltaram-se então umas para as outras, não resistiram mais e riram mesmo. Que homenzinho patusco! Desculpavam-se, explica­vam-se sem palavras. Entendiam-se. Um minuto de simplicidade e simpatia iluminou-as. A criança que batera palmas limpou com a mão o vidro em­baciado da janela à procura do estranho passa­geiro. Viu-o atravessar a rua, seguir pelo passeio agarrado às casas, desaparecer.
Só então a senhora nova e bonita, que era a mãe da criança, abriu os olhos. Ninguém hoje lhe chamava Nini. Nini era a filha. Ela agora é que dizia à filha: «Uma menina a assobiar, Nini! Uma menina bonita não faz barulho.»
Ficara nos lábios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade. Depois esse sor­riso foi-se apagando. Morreu. As pessoas tomaram consciência da sua momentânea quebra de compostura. Lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais. Que patetice! Não havia outra palavra para aquilo. Que pate­tice ! Os cavalheiros recomeçaram a ler os títulos das notícias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos. A criança tornou a olhar para a rua.
Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade.

Mário Dionísio,
O Dia Cinzento e outros contos

15 de julho de 2005


Walter Benjamin (1842-1940)


A Klee painting named Angelus Novus* shows an angel looking as though he is about to move away from something he is fixedly contemplating. His eyes are staring, his mouth is open, his wings are spread. This is how one pictures the angel of history. His face is turned toward the past. Where we perceive a chain of events, he sees one single catastrophe which keeps piling wreckage and hurls it in front of his feet. The angel would like to stay, awaken the dead, and make whole what has been smashed. But a storm is blowing in from Paradise; it has got caught in his wings with such a violence that the angel can no longer close them. The storm irresistibly propels him into the future to which his back is turned, while the pile of debris before him grows skyward. This storm is what we call progress.
ARTE DE INVENTAR OS PERSONAGENS

Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos nomes
e os personagens aparecem

Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação

14 de julho de 2005


Gustav Klimt (1862-1918), The Death of Juliet

13 de julho de 2005

BREATHING TOGETHER


You can
reach into me
anywhere
deep as you can;

in pleasure,
in pain,
I slip away
from you;

in language,
in words,
here
you are breathing
me in,
you inhale me
completely.

Barbara Korum

.

12 de julho de 2005

Modigliani, «Alice»
Modigliani (1884-1920)

11 de julho de 2005


Pablo Neruda (1904-1973)


POEMA V


Para que tú me oigas
mis palabras
se adelgazan a veces
como las huellas de las gaviotas en las playas.

Collar, cascabel ebrio
para tus manos suaves como las uvas.

Y las miro lejanas mis palabras.
Más que mías son tuyas.
Van trepando en mi viejo dolor como las yedras.

Ellas trepan así por las paredes húmedas.
Eres tú la culpable de este juego sangriento.

Ellas están huyendo de mi guarida oscura.
Todo lo llenas tú, todo lo llenas.

Antes que tú poblaron la soledad que ocupas,
y están acostumbradas más que tú a mi tristeza.

Ahora quiero que digan lo que quiero decirte
para que tú las oigas como quiero que me oigas.

El viento de la angustia aún las suele arrastrar.
Huracanes de sueños aún a veces las tumban.

Escuchas otras voces en mi voz dolorida.
Llanto de viejas bocas, sangre de viejas súplicas.
Ámame, compañera. No me abandones. Sígueme.
Sígueme, compañera, en esa ola de angustia.

Pero se van tiñendo con tu amor mis palabras.
Todo lo ocupas tú, todo lo ocupas.

Voy haciendo de todas un collar infinito
para tus blancas manos, suaves como las uvas.


Pablo Neruda





10 de julho de 2005


Marcel Proust (1871-1922)


Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire: «Je m’endors.» Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil m’éveillait; je voulais poser le volume que je croyais avoir encore dans les mains et souffler ma lumière; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage: une église, un quatuor, la rivalité de François Ier et de Charles Quint. Cette croyance survivait pendant quelques secondes à mon réveil; elle ne choquait pas ma raison mais pesait comme des écailles sur mes yeux et les empêchait de se rendre compte que le bougeoir n’était plus allumé. Puis elle commençait à me devenir inintelligible, comme après la métempsycose les pensées d’une existence antérieure; le sujet du livre se détachait de moi, j’étais libre de m’y appliquer ou non; aussitôt je recouvrais la vue et j’étais bien étonné de trouver autour de moi une obscurité, douce et reposante pour mes yeux, mais peut-être plus encore pour mon esprit, à qui elle apparaissait comme une chose sans cause, incompréhensible, comme une chose vraiment obscure. Je me demandais quelle heure il pouvait être; j’entendais le sifflement des trains qui, plus ou moins éloigné, comme le chant d’un oiseau dans une forêt, relevant les distances, me décrivait l’étendue de la campagne déserte où le voyageur se hâte vers la station prochaine; et le petit chemin qu’il suit va être gravé dans son souvenir par l’excitation qu’il doit à des lieux nouveaux, à des actes inaccoutumés, à la causerie récente et aux adieux sous la lampe étrangère qui le suivent encore dans le silence de la nuit, à la douceur prochaine du retour.


Marcel Proust, À la Recherche du Temps Perdu


Estoy desnudo ante el agua inmóvil. He dejado mi ropa en el
silencio de las últimas ramas.

Esto era el destino:

llegar al borde y tener miedo de la quietud del agua.


Antonio Gamoneda

Camille Pissarro, «Les Côteaux de l'Hermitage»
Camille Pissarro (1830-1903)

8 de julho de 2005

Despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,

abandono. Despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.

Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objectos fixos em repouso,

os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.


Francisco José Viegas, Metade da Vida

5 de julho de 2005

[back to whatever i. was doing]

E porquê esta urgência em ter tudo ou não serei nada, necessidade compulsiva de morte em confronto com a minha loucura, quando nem sequer preciso dela, o silêncio é mais o que sou e é isso que me ecoa de há quanto se passou, e é por isso que morro, por isto e por quanto me não.
acorda, é tempo, o sol, já alto e pleno, afugentou as larvas tumulares!

Como se foi sendo tempo de morrer. É neste confronto que me encontro, necessidade compulsiva de morte, dizias, quando afinal a loucura, e será por isso, por isto e por quanto se passou, não sei, escrevo a vinte anos do que acabo por não ser e tudo se me verga a quanto existo, quanto me não dizes, quanto o silêncio que sou e isso mesmo me emudece, já tive jantares de codornizes fritas em azeite com alho e especiarias. Amigo que não sei. Fantasma outro de mim.
quanto de meu se perde nestas noites de nunca mais se acabam?

Tão fácil saber onde me encontro, em que abismo me procuro a resposta, tudo, há, nalgumas almas (preferia-te a escrever o tempo).
mau, o gin.

Não era isso, não era isso... Esqueces o muro e para lá dele os teus cinco anos. Lembro-te os calções azuis e chamam-me. Não fui. Esta a minha casa e o silêncio, as escadas que subo ainda e não serei nada.
é um bom sítio para morrer a chuva


Mia Couto (n. 1955)


O FAZEDOR DE LUZES

Estou deitada, baixo do céu estreloso, lembrando meu pai. Nesse há muito tempo, nós nos dedicávamos, à noite, a apanhar frescos. O céu era uma ardósia riscada por súbitos morcegos, desses caçadores de perfumes.
Pai, eu quero ter uma estrela!
Estrela, não: é muito custosa de criar.
Eu insistia. Queria possuir estrela como as outras meninas tinham brinquedos, bonecos, cachorros. Aqui, no rés da terra, eu não podia ter nada. Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas posses.
Mas, pai: o senhor diz que faz criação de estrelas.
Fazia, tive que entregar todas. Eram dívidas, paguei com estrelas.
Eu sei que sobrou uma.
Meu pai não respondia nem sim nem talvez. Era um homem vagaroso e vago, sabedor de coisas sem teor. Dedicava-se a serviços anónimos, propício a nenhum esforço. Dizia:
Sou como o peixe, ninguém me viu transpirar.
E me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o rega, quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem.
É, minha filha: aprenda com o mineral. Ninguém sabe tanto e tão antigo como a pedra.
Cuidava-me sozinha, órfã eu, viúvo ele. Ou seria ele o órfão, sofrendo do mesmo meu parentesco, o falecimento de minha mãe? Preguntas dessas são incorrigíveis: quem sabe é quem nunca responde. Na realidade, meu nascimento foi um luto para meu pai: minha mãe trocou de existir em meu parto. Me embrulharam em capulana com os sangues todos misturados, o meu novinho em gota e o dela já em cascata para o abismo. Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai nunca mais compridar olho em outra mulher. Em minha toda vida, eu conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a pedra. Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E mais um agasalho: as estranhas falas com que ele me enevoava o adormecer.
Você escuta os outros se lamentarem de seu pai.
Não escuto, não – menti.
Dizem eu não faço nada na vida, não faço nem ideia.
E prosseguia, se perdoando:
Mas eu, minha filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar a mim, exacto e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou grande, lá sou senhor, até posso nascer-me as vezes que quiser. Eu não tenho um aqui.
– Não diga assim, pai.
Havia de ver, minha filha, lá eu não sou como neste lado: não cedo conversa a um qualquer. Pois, nesse outro mundo, filhinha, eu tenho o mais requerido dos serviços: sou fabricador de estrelas. Sim, faço estrelas por encomenda.
Verdade, pai?
Verdade, filha. Pergunte a Deus, sou até fornecedor do Paraíso.
Voltávamos ao quintal, deitávamos a assistir ao céu. Eu já adivinhava, meu velho não suportava silêncio. E, num gesto amplo, ele cobria o inteiro presépio do horizonte:
Tudo isso fui eu que criei.
Eu estremecia, gostosa de me sentir pequenina, junta a esse deus tão caseiro. E lá, pai, eles nos vêem a nós? Nada, filha, não nos vêem. A luz daqui está suja, os homens poeiraram isto tudo.
Mas ela nos vê, lá nessa estrela onde foi?
O pai não respondia. Ele que tinha palavra para tudo, tropeçava sempre no mesmo silêncio. Minha mãe: dela não se menci0nava nunca nada. Ela não era nem criatura, nem coisa, nem causa. Nem sequer ausência. E não sendo nem sujeito nem passado, ela escapava a ser lembrada. Meu velho fugia a sete corações do assunto da saudade. Como daquela vez que a mão, veloz, enxugou o rosto.
Você nunca olhe o céu enquanto estiver chorando. Promete?
Então, me dê uma estrela, pai.
Nada, as estrelas não podem ser dadas. Nunca veja a noite por través das lágrimas – insistiu ele, sério.
Depois, quando se ergueu lhe veio uma tontura, sua mão procurou apoio no meio de dançarinas visões. Eu o amparei, raiz segurando a última árvore.
Está doente, pai?
Qual doente?! É a terra que não gosta que eu saia de cima dela. A terra é uma mulher muito ciumenta.
E outras vezes ele voltou a tontear. Até que uma noite, após estranho silêncio, ele me disse, esquivo, quase tímido:
Vá lá. Escolha uma...
Posso, pai?
E fingi apontar uma estrela, entre os mil cristais do céu. Ele fez conta que anotava o preciso lugar, marcando no quadro negro o astro que eu apontara. Me ajeitou a mão na minha fronte e me puxou para seu peito. Senti o bater do seu coração:
Escolheu bem, filha.
E explicou: aquela que eu indicara seria a luz onde ele iria morrer. Ninguém lembra o escuro onde nasceu. Todos viemos de fonte obscura. Por isso, ele preferia a claridade dessa estrela ao escuro de um qualquer cemitério. Então, por primeira vez, meu pai fez referência àquela que me anteriorou.
É nessa estrela que ela está.
Agora, deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela onde meu pai habita. Lá onde ele se inventa de estar com sua amada. E em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em barco e o céu se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque os olhos. Tarde de mais. Já a água é todas as águas e eu me vou deitando na capulana onde as primeiras mãos me seguraram a existência.

Mia Couto, Na berma de nenhuma estrada e outros contos, Lisboa, Caminho, 2001.

4 de julho de 2005


Adolfo Casais Monteiro (1908-1972)


ODE AO TEJO E À MEMÓRIA DE ÁLVARO DE CAMPOS

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa –
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.

Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!

Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando
Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.

Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

3 de julho de 2005


Franz Kafka (1883-1924)


O Castelo é já em si infinitamente mais poderoso do que vós; apesar disso, ainda talvez se pudesse ter dúvidas a respeito da vitória final; vós, porém, em vez de vos aproveitardes disto, parece que dirigis todos os vossos esforços no sentido de ainda mais indubitavelmente lhe assegurardes a vitória, e por isso é que vos tomais de medos, assim de repente, e no meio da luta, e sem nenhuma razão de ser, aumentando assim a vossa impotência.

1 de julho de 2005

Chen Zhou (1427-1509), «Poet on a mountain top»
Chinoiserie

Ling Yang, the poet, sits all day in his willow-hidden hut by the river side, and dreams of the Lady Moy. Spring and the swallows have returned from the timeless isles of amaranth, further than the flight of sails in the unknown south; the silver buds of the willow are breaking into gold; and delicate jade-green reeds have begun to push their way among the brown and yellow rushes of yesteryear. But Ling Yang is heedless of the brightening azure, the light that lengthens; and he has no eye for the northward flight of the waterfowl, and the passing of the last clouds, that melt and vanish in the flames of an amber sunset. For him, there is no season save that moon of waning summer in which he first met the Lady Moy. But a sorrow deeper than the sorrow of autumn abides in his heart: for the heart of Moy is colder to him than high mountain snows above a tropic valley; and all the songs he has made for her, the songs of the flute and the songs of the lute, have found no favor in her hearing.

Leagues away, in her pavilion of scarlet lacquer and ebony, the Lady Moy reclines on a couch piled with sapphire-coloured silks. All day, through the gathering gold of the willow-foliage, she watches the placid lake, on whose surface the pale-green lily pads have begun to widen. Beside her, in a turquoise-studded binding, there lie the verses of the poet Ling Yung, who lived six centuries ago, and who sang in all his songs the praise of the Lady Loy, who disdained him. Moy has no need to peruse them any longer, for they live in her memory even as upon the written page. And, sighing, she dreams ever of the great poet, Ling Yung, and of the melancholy romance that inspired his songs, and wonders enviously at the odd disdain that was shown toward him by the Lady Loy.


Clark Ashton Smith