14 de agosto de 2005


René Goscinny (1926-1977)



UMA AULA DE COISAS

A professora disse-nos que amanhã íamos ter uma aula especial, uma aula de coisas; cada um de nós deverá levar um objecto, uma lembrança de viagem, de preferência. Vamos falar dos objectos e vamos estudá-los, e cada um de nós vai explicar a sua origem e as recordações que estão relacionadas com eles. Será assim uma aula de coisas, uma aula de Geografia e um exercício de redacção.
— Mas o que é que temos que trazer, professora?— perguntou o Clotário.
— Eu já disse, Clotário — respondeu a professora.
— Um objecto interessante, que tenha uma história. Por exemplo, há uns anos atrás um dos meus alunos trouxe um osso de dinossauro, que o tio tinha encon­trado quando andou em escavações. Alguém sabe dizer o que é um dinossauro?
O Aniano levantou a mão, mas como desatámos todos a falar das coisas que havíamos de trazer, e com o barulho que fazia a professora a bater com a régua na secretária, não conseguimos ouvir o que aquele menino bonito da professora, o Aniano, estava a dizer.
Ao chegar a casa, disse ao Papá que tinha que levar para a escola uma coisa que fosse uma lem­brança fabulosa de alguma viagem.
— Essas aulas práticas são uma óptima ideia— disse o Papá. — Vendo as coisas vocês nunca mais se esquecem. A tua professora é muito boa, muito moderna. Mas, vamos lá a ver... O que é que podes levar?
— A professora disse que o que era mais engra­çado era um osso de dinossauro — expliquei eu.
O Papá arregalou os olhos muito admirado e perguntou :
— Um osso de dinossauro? Eis uma ideia! E onde queres que vá buscar um osso de dinossauro? Não, Nicolau, com certeza que vamos ter que nos contentar com algo mais simples.
Então, eu disse ao Papá que não queria levar coisas simples, que queria levar coisas que pusessem os meus colegas boquiabertos de espanto, e o Papá respondeu que não tinha coisas que pusessem os meus colegas boquiabertos. Então, eu disse que se era assim não valia a pena levar coisas que não surpreendessem ninguém e que até era melhor nem ir à escola amanhã, e o Papá respondeu .que começava a ficar farto e que se calhar não me deixava comer a sobremesa, e que a minha professora tinha ideias patetas; e eu dei um pontapé no sofá da sala. O Papá perguntou-me se eu queria levar uma bofetada, eu desatei a chorar, e a Mamã veio a correr da cozinha.
— O que foi, agora? — perguntou a Mamã. — Não vos posso deixar sozinhos, aos dois, que há logo problemas. Nicolau, pára de chorar! O que é que se passa?
— O que se passa é que o teu filho está furioso porque eu lhe recusei um osso de dinossauro — disse o Papá.
A Mamã olhou para nós, para o Papá e para mim, e perguntou se estavam todos a ficar malucos, naquela casa. Então o Papá explicou-lhe e a Mamã disse-me:
— Mas, então, Nicolau, não é preciso fazeres esse drama. Olha, no placard há lembranças muito inte­ressantes das nossas viagens. Por exemplo, a concha grande que comprámos em Bains-les-Mers, quando estivemos lá de férias.
— É verdade! Essa concha vale mais do que todos os ossos de dinossauro do mundo — disse o Papá.
Eu disse que não sabia se a concha ia espantar os meus amigos, mas a Mamã disse que eles iam achá-la fabulosa e que a professora me daria os parabéns. O Papá foi buscar a concha, que é muito grande e tem escrito por baixo «Recordação de Bains-les-Mers», e o Papá disse-me que eu ia espantar toda a gente se contasse as férias em Bains-les-Mers, a nossa excursão à ilha das Brumas e, até mesmo, o preço que pagámos na pensão. E se isso não espantasse os meus colegas, era porque os meus colegas eram difíceis de espantar. A Mamã riu-se e disse para irmos para a mesa, e no dia seguinte eu fui para a escola, todo orgulhoso com a minha concha embrulhada em papel castanho.
Quando cheguei à escola, já lá estavam todos os meus colegas e eles perguntaram-me o que é que eu tinha trazido.
— E vocês? — perguntei eu.
— Ah, só mostro na aula — respondeu o Godofredo, que gosta muito de fazer mistérios.
Os outros também não quiseram dizer, menos o Joaquim que nos mostrou uma faca, a mais engraçada que se possa imaginar.
— É um corta-papel que o meu tio Abdon trouxe de Toledo como presente para o meu pai. É de Espanha — explicou-nos o Joaquim.
Mas o Caldo — é o nosso vigilante, mas esse não é o seu verdadeiro nome — viu o Joaquim e con­fiscou-lhe o corta-papel, e disse que já tinha proibido milhares de vezes que trouxessem objectos perigosos para a escola.
— Mas, senhor, foi a professora que disse para eu trazer! — gritou o Joaquim.
— Ah? Foi a professora que disse para trazer essa arma para a sala? Muito bem. Não só vou confiscar este objecto como vai ainda conjugar a frase «Não devo mentir ao senhor vigilante quando ele me faz uma pergunta sobre um objecto particularmente perigoso que eu trouxe às escondidas para a escola». É inútil chorar, e os outros calem-se se não querem que eu os castigue também!
E o Caldo foi tocar a campainha, nós pusemo-nos em fila, e quando entrámos na sala o Joaquim con­tinuava a chorar.
— Começamos bem — disse a professora. — Joaquim, o que se passa?
O Joaquim explicou-lhe, a professora deu um suspiro e disse que não era lá muito boa ideia trazer uma faca para a escola, mas que ela ia resolver tudo com o senhor Dubon, é este o verdadeiro nome do Caldo.
— Bom — disse a professora —, ora vamos lá a ver o que é que trouxeram. Ponham os objectos à vossa frente, em cima das carteiras.
Então tirámos todos os objectos que tínhamos trazido: o Alceste tinha trazido uma lista de um restaurante onde tinha comido muito bem com os pais, na Bretanha; o Eudes tinha um postal da Cote d'Azur; o Aniano um livro de geografia que os pais tinham comprado na Normandia; o Clotário tinha trazido uma desculpa porque não tinha encontrado nada em casa, porque ele não tinha compreendido bem, ele pensava que tinha que trazer ossos; e o Maixent e o Rufus, esses imbecis, trouxeram cada um uma concha.
— Sim, mas eu encontrei a minha concha na praia, uma vez que salvei um homem que se estava a afogar— disse o Rufus.
— Não me faças rir — gritou o Maixent. — Primeiro, tu nem sequer sabes boiar e, depois, se encontraste a tua concha na praia, porque é que ela tem escrito por baixo: «Recordação da Plage-des-Horizons»?
— Boa! — gritei eu.
— Queres levar uma bofetada? — perguntou-me o Rufus.
— Rufus, saia! — gritou a professora. — Ficam todos de castigo na Quinta-feira. Nicolau, Maixent, estejam sossegados se não querem ser também casti­gados!
— Eu trouxe uma lembrança da Suíça — disse o Godofredo com um grande sorriso, todo orgulhoso.
— É um relógio de ouro que o meu pai comprou lá.
— Um relógio de ouro? — gritou a professora. — E o seu pai sabe que trouxe o relógio para a escola?
— Bem, não — disse o Godofredo. — Mas quando eu lhe disser que foi a senhora que me pediu para eu trazer, ele não se zanga comigo.
— Que fui eu o quê?... — gritou a professora. — Seu inconsciente! Faça o favor de guardar essa jóia na sua algibeira!
— Eu, se não levar o meu corta-papel, o meu pai vai-se zangar comigo — disse o Joaquim. — Ó Joaquim, eu já lhe disse que vou resolver esse problema — gritou a professora.
— Senhora, não consigo encontrar o relógio! Guardei-o na minha algibeira, como me disse, mas já não o encontro! — gritou o Godofredo.
— Enfim, Godofredo — disse a professora. — O relógio tem que estar aí. Já procurou no chão?
— Sim, senhora — respondeu o Godofredo. — Não está no chão.
Então a professora aproximou-se do lugar do Godofredo, olhou para todo o lado, e depois pediu-nos para procurarmos também, com cuidado para não pisarmos o relógio, e o Maixent atirou a minha concha ao chão, e então eu dei-lhe uma bofetada. A professora pôs-se a gritar, deu-nos alguns castigos, e o Godofredo disse que se não encontrássemos o relógio a professora tinha que ir falar com o pai, e o Joaquim disse que ela também tinha que ir falar com o pai dele por causa do corta-papel. Mas ficou tudo resolvido porque o relógio estava no forro do casaco do Godofredo, o Caldo devolveu o corta-papel ao Joaquim e a professora tirou os castigos.
Foi uma aula muito interessante, e a professora disse que graças às coisas que tínhamos levado, ela nunca mais se ia esquecer desta aula.
Sempé - Goscinny, As aventuras do menino Nicolau

6 comentários:

Joao disse...

vim aqui parar com a procura de Eudes e Clotário. Nomes estranhos estes

Graça disse...

Sim, os nomes são estranhos, ams as aventiras são fabulosas...

Joao disse...

A tradução poderia ter encontrado uns nomes mais simples. Algumas das aventuras colocam os personagens aos murros... :)

Graça disse...

Sim, os miúdos no recreio, o pai do Nicolau e o vizinho... mas não sei se, retirando os murros, não se descaracterizavam as personagens ...

Joao disse...

Sim, claro. Outros tempos, de recreios sem vigilantes

Graça disse...

Sem vigilantes? Então e o Caldo? O Caldo?
Lembrei-me de que uma das aventuras mais engraçadas é precisamente sobre, digamos, a violência no desporto - um jogo de críquete entre o pai do Nicolau e um vizinho. Num próximo post.