1 de fevereiro de 2006

hipóteses individuais

Habituo-me, self-service, a fazer da visão
um modo de não ver. Guardo o tédio
como alguns jóias velhas. Talvez um dia,
quem sabe. Às vezes creio que também
sou um filho de Deus, embora nada no
bilhete de identidade ou no ritmo diário
o faça prever. Pressinto, desastrado coração,
que há um talvez e que o tédio, afinal,
é tão-só um modo de ter e ser dono,
de poder abrir e fechar portas e janelas
como quem fica à espera de que
a insónia dê lugar ao sono. Com essas
manchas de inteligência, com os relâmpagos
dessa lucidez, levanto-me e procuro
um horóscopo diferente, em que ninguém
crê, nem eu. Curiosamente, habituo-me
a morrer como se fosse um café na hora
de fechar: periscas no chão, mesas e cadeiras
— vazias, empilhadas —, uma luz verde
que chega a ser bela quando alguém
acende um cigarro.

Carlos Bessa

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