4 de setembro de 2006


Raul de Carvalho (1920-1984)

Serpente morta, por instantes


Sinto que me afeiçoo
a ti.
Por motivos ignorados, ia a escrever.
Arrependi-me. Os motivos são outros, residem lá no fundo da minha consciência, e dela saltam! livres! e livres, são claros — impõem se,
circunscrevem-se, precisam-se; entristecem-me.
Eu nunca soube nunca o que era a companhia.
Começo a habituar-me. A viver a teu lado.
Não é que se desfaça a bruma; há poços cheios de inverno, calafetados. Tenho dificuldade é compreender por que ris, porque és ágil e firme,
quando o és.
Reprimo, muitas vezes, as lágrimas. Falo-te docemente. Não respondes. E o teu silêncio é cúmplice do meu, formam, sem querer, uma rosa que
brota da mesma haste. Floresce em casa que já não é alheia.
A voluptuosidade nascente do teu corpo é um vaso que eu encho com
carinho. Beijo-te, apenas. E as recordações são capitosas.
Mas o astro que reflectiu meu nome,
empalideceu, puxou por mim para o outro lado.
E eis-me deitado ao pé de ti, desperto, lembrando como é triste ter a morte na frente, ter a vida na frente...
Soluços, soluços são os que se não ouvem.
Contagiam.
E, dentro da cabeça, zumbem abelhas de desconforto e mágoa. A noite
iniciada não tem fim.

Raul de Carvalho

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2 comentários:

celso serra disse...

Grande escola!Gostei.

Graça disse...

A poesia é sempre uma boa prenda, Romã, nem que seja pela cumplicidade que gera. Sou suspeita para afirmar que é uma boa escolha...

Obrigada pela visita e pelas palavras, Celeman.