4 de fevereiro de 2007


João de Melo (1949)

Eu sou talvez de todos o mais sóbrio. Bebo só até ao limite do meu próprio desejo do vinho. Porque o vinho alegra, aviva e expõe os estados feridos da minha alma; ele gira e corre no meu sangue como a máquina dos sonhos que se movem ocultos no meu conheci­mento de mim; e alivia e liberta o meu coração dos verbos proibidos e dos pensamentos frios. O vinho sou eu e os meus inofensivos delitos. Sabe-o bem a minha mulher; sabe-o no momento em que meto a chave à porta e entro em casa. Nunca me viu cambalear, nem decerto me ouviu dizer grandes disparates. Mas basta-lhe pousar os olhos nos meus olhos e os lábios nos meus lábios: ninguém como ela conhece a razão de ser do vinho no meu hálito e no meu olhar; ninguém como ela sabe que a tragédia de certos homens con­siste precisamente em nunca terem estado à altura de tragédia nenhuma; ninguém como a minha mulher compreende quão importante é para mim mudar de vez em quando o meu mundo, soltar o pássaro que em mim deixou de cantar, abrir-me em quilha, rasgar a vela do meu barco e erguer ao vento do mar impossí­vel os destinos da alma; ninguém como ela até hoje percebeu o que sofre um homem que não sofre, um homem que se despediu de todos e de cada um dos seus sonhos de homem, no tempo do seu país — por­que só ela, minha mulher, me acompanha à cama; só ela vê como me deixo cair não ao comprido, mas de atravessado na nossa cama de casal, à maneira de um desesperado que tivesse naufragado à vista da praia. Só ela me despe, me enfia o pijama e põe a direito na cama; só ela me tapa com um lençol e dois cobertores para que eu possa dormir sem correr o risco de gelar de madrugada; e só ela volta — então mais só do que nunca — para o silêncio da noite e da cozinha, a fim de se sentar à mesa, olhar as horas paradas no relógio da parede e (comigo ausente da sua vida) comer pão com lágrimas, beber leite frio com cevada e ficar para ali, hora após hora, a tentar desistir da vida, de mim, da minha mágoa de homem nascido para nada, ainda que sem o conseguir — e a chorar por ela e por mim, mas também para nada.

João de Melo, As Coisas da Alma

1 comentário:

Mito disse...

Quase sentimos o salpico desta angústia a gelar-nos subitamente na fronte. A tragédia nunca me deixou indiferente; é o mais antigo e perfeito modo de perceber os meandros daquilo a que Einstein chama espaço-tempo, tão só a quarta dimensão do nosso desespero.