25 de novembro de 2007

 caricatura de Bordalo Pinheiro
Eça de Queirós (1845-1900)



Foi uma dessas manhãs que preguiçando assim no sofá com a Revista dos Dois Mundos na mão, ele ouviu um rumor na antecâmara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:
- Sua Alteza Real está visível?
- Oh!, Ega! - gritou Carlos, dando um salto do sofá.
E caíram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.
- Quando chegaste tu?
- Esta manhã. Caramba! - exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos ombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o enfim no olho. - Caramba! Tu vens esplêndido desses Londres, dessas civilizações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não há nada como a barba toda!
Carlos ria, abraçando-o outra vez.
- E de onde vens tu, de Celorico?
- Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O fígado, o baço, uma infinidade de vísceras comprometidas. Enfim, doze anos de vinhos e águas-ardentes...
Depois falaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligência, às várzeas de Celorico, o adeus de eternidade.
- Imagina tu, Carlos, amigo, a história deliciosa que me sucede com minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caiu! Fiquei na quinta, fazendo epigramas ao padre Serafim e a toda a corte do céu. Chega Julho, e aparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diftéricas... A mamã salta imediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do ateu, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que ofendeu Nosso Senhor e atraiu o flagelo. Minha irmã concorda. Consultam o padre Serafim. O homem, que não gosta de me ver na quinta, diz que é possível que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quase de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruíne, mas que não esteja ali chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...
- E a epidemia...
- Desapareceu logo- disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.
Carlos mirava aquelas luvas do Ega; e as polainas de casimira; e o cabelo que ele trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de cetim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dândi, vistoso, paramentado, artificial e com pó de arroz - e Carlos deixou enfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos lábios:
- Ega, que extraordinário casaco!
Por aquele sol macio e morno de um fim de outono português, o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça, uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tísico uma rica e fofa espessura de peles de marta.
- É uma boa peliça, hem? - disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exibindo a opulência do forro. - Mandei-a vir pelo Strauss... Benefícios da epidemia.
- Como podes tu suportar isso?
- É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.
Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete.
- E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto esplêndido!
Carlos falou dos seus planos, de altas ideias de trabalho, das obras do laboratório... (...)
O Ega, repoltreado, com aquele ar de tranquila e sólida felicidade que Carlos já notara, disse puxando lentamente os punhos:
- É necessário reorganizar essa vida. Precisamos arranjar um cenáculo, uma boemiazinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com literatura... (...)
Desembaraçou-se da opulenta peliça, e apareceu em peitilho de camisa.
- O quê! Tu não trazias nada por baixo? - exclamou Carlos. - Nem colete?
- Não; então não a podia aguentar... Isto é para o efeito moral, para impressionar o indígena... Mas, não há negá-lo, é pesada!
E imediatamente voltou à sua ideia: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organizava-se um Cenáculo, um Decameron de arte e diletantismo, rapazes e mulheres - três ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das filosofias...
Carlos ria-se desta ideia do Ega. Três mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenáculo! Lamentável ilusão de um homem de Celorico! (...)
- Enfim, exclamou o Ega, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?
Desembaraçado da majestade que lhe dava a peliça o antigo Ega reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se também, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambeta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharam sobre o país...
Mas o relógio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Ega saltou sobre a peliça, sepultou-se nela, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, saiu com um arzinho de luxo e de aventura.
Eça de Queirós, Os Maias

7 de novembro de 2007


Cecília Meireles (1901-1964)





Encomenda


Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê - como esta:
Em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.


Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.


Cecília Meireles

4 de novembro de 2007



Sonnet XIV

If thou must love me, let it be for nought
Except for love's sake only. Do not say
'I love her for her smile-her look-her way
Of speaking gently,-for a trick of thought


That falls in well with mine, and certes brought
A sense of pleasant ease on such a day'-
For these things in themselves, Beloved, may
Be changed, or change for thee,-and love, so wrought,


May be unwrought so. Neither love me for
Thine own dear pity's wiping my cheeks dry,-
A creature might forget to weep, who bore


Thy comfort long, and lose thy love thereby!
But love me for love's sake, that evermore
Thou mayst love on, through love's eternity.


Elizabeth Barret Browning, Sonnets from the Portuguese
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