31 de janeiro de 2010



A caixa das cartas antigas


Ainda está por decidir a caixa
onde somamos
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas
como ordenar essas linhas
(mesmo que
para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser
desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?

chaves que deves fazer por
perder nas despedidas
se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um
voo mais desprevenido.



João Luís Barreto Guimarães

23 de janeiro de 2010




Love after Love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,


and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you


all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,


the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.


Derek Walcott

11 de janeiro de 2010

Fotografia de Ibán Ramón

o sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforecente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras
falam os rios deste regresso e pelas margens ressoam passos
os poços onde nos debruçámos aproximam-se perigosamente
da ausência e da sede procurámos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível para dentro dos fragmentados corpos
e um dia...quem sabe?
chegaremos
Al Berto





7 de janeiro de 2010




Cheguei a ter medo de te perder,
tu não chegaste sequer a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
ouve-se nas outras palavras que trocamos.

Miserável mundo nosso e alheio,
igual ao que todos disseram da sua época,
e pior, porque este vivemos nós
e conhecemos nós, cada um conforme pode.

Já morrerem os ídolos todos da infância
e os da adolescência vão a caminho,
sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje há já só um dos Righteous Brothers).

Na feira de velharias uma caixa
para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
num dos cantos, uma pequena cruz de cal.

Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
e o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos,
eco um do outro em ricochete de silêncios.

Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005

5 de janeiro de 2010

3 de janeiro de 2010

Foto de Carla van de Puttelaar



fragmento


são asas de alvoroço ou são sinais?

são sombras agitadas na descida?
são palavras aladas junto ao cais?

são um rumor no vento? ou repetida
animação do instante nas manhãs
quando ao passar da gente passa a vida

e alguém espera olhando as horas vãs?


Vasco Graça Moura