29 de dezembro de 2011






Encontrei-o no bolso do primeiro
casaco deste verão. Frio. Toquei-lhe
o corpo das letras devagar como se
fosse mão que me aguardasse. Frio.

Trouxe-o aos olhos com desejos de
lembrar-me que tarde e de que verão;
li com os lábios esse nome que talvez

me livrasse da doença, tentei escutá-lo
numa voz que me estendesse os dedos.
Frio,frio.




Maria do Rosário Pedreira,Nenhum Nome Depois
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24 de dezembro de 2011






















Natal, e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal

 

23 de dezembro de 2011





LA MUY HERMOSA


Sê como eles. Chegam pela manhã
gastando os poucos trocos, a vida. Sentam-se
nos sombrios recantos da taberna e entretêm-se
a jogar bilhar ou lançando cartas sebentas sobre
mesas de madeira acariciadas pelos anos.

Fingem sorrir, acendem um cigarro sem que lhes
importe a beleza ou demais feridas. Mais relevantes
são os pequenos dramas de rua, intrigas, mortes e
desavenças - ou a ébria bondade dos amigos. Aprende
a humildade desses velhos de boné ensombrando
as súbitas rugas da face. Para tanto abandono
não são precisas palavras. Os mendigos e a grande confraria
do álcool te dirão o mais certo silêncio. Sepulta
a solidão nos mármores gordurosos de balcões tristes
e escuros e esquece o teu próprio nome, preferindo-lhe
a serenidade de um vagaroso declínio.

Bebe com eles, sabe a cor de seus ternos olhares
praguejantes, e diz às mãos que não passam
de mãos, ao corpo que não passa de corpo.

Manuel de Freitas



21 de dezembro de 2011





























Estou como tu dizias aqui há tempos: "Caiu-me a alma a uma latrina, preciso de um banho por dentro!"
Ega murmurou melancolicamente:
- Essa necessidade de banhos morais está-se tornando com efeito tão frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para eles.

Eça de Queirós, Os Maias
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20 de dezembro de 2011




















escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar


Al Berto, O Medo

18 de dezembro de 2011



LIVRO ANTIGO

violetas secas entre páginas de livros
onde em tempos anunciaram o amargor da noite
e a humidade tremenda das insónias
o mar
o mar ao longe
debruça-se então para o interior do livro
lê qualquer coisa sobre o coração dos líquenes
ou deambula de sílaba em sílaba onde
os dedos se mancham de tinta e no cérebro
ergue-se uma planta de cinza noite adiante
fechou o livro ao amanhecer
era como se tivesse envelhecido séculos
com as violetas
fecha a persiana e adormece

Al Berto, O Medo


17 de dezembro de 2011


















Everlasting Everything

Everything alive must die
Every building built to the sky will fall
Don't try to tell me my
Everlasting love is a lie

Everlasting everything
Oh nothing could mean anything at all

Every wave that hits the shore
Every book that I adore
Gone like a circus, gone like a troubadour
Everlasting love for ever more

Oh I know this might sound sad
But everything goes both good and the bad
It all adds up and you should be glad
Everlasting love is all you have


Jeff Tweedy


11 de dezembro de 2011








































Foto de Austin Dickinson (Amherst College Library)


There is another sky
Ever serene and fair,
And there is another sunshine,
Though it be darkness there;
Never mind faded forests, Austin,
Never mind silent fields -
Here is a little forest,
Whose leaf is ever green;
Here is a brighter garden,
Where not a frost has been;
In its unfading flowers
I hear the bright bee hum:
Prithee, my brother,
Into my garden come!

Emily Dickinson