27 de abril de 2006

História de Ayandal




Nesses tempos, numa outra terra, junto ao grande oceano, na aldeia de C´noth vivia Ayandal.
Ayandal era um dos jovens da aldeia. E, como todos os outros jovens da aldeia, sonhava com o dia em que se tornasse adulto e pudesse acompanhar os homens, nos barcos, viajando pelo oceano, pescando, visitando terras distantes, conhecendo outras pessoas e vendo coisas, sabendo o que não poderia saber na aldeia.

...

O dia chegou em que Ayandal se tornava adulto. Acordou ainda antes de o sol se levantar no horizonte. Vestiu-se, bebeu uma caneca de leite, pegou no saco de provisões que a sua mãe lhe tinha preparado. Saiu de casa, olhou uma vez para ela e correu para o cais. Chegou ao raiar da alvorada. Esperavam-no os anciãos da aldeia, a ele e aos outros sete jovens que nesse dia deveriam fazer a Prova.
Quando finalmente estavam todos reunidos, um dos anciãos tomou a palavra. Cada um dos jovens, no seu bote, deveria navegar até perder vista de terra e encontrar um barco com velas listadas brancas e azuis. Nesse barco ser-lhes-ia dado algo que deveriam trazer aos anciãos.
Ayandal correu para o seu bote, desamarrou-o do cais e pegou nos remos.
Quando saiu da enseada era já o primeiro dos oito. Rapidamente arrumou os remos no fundo do bote e içou a vela única.
O bote deslizava sobre as águas e Ayandal, olhando para trás, via a aldeia tornando-se mais e mais pequena, até desaparecer, a costa tornando-se mais e mais indistinta, os bosques, os prados, os montes tornando-se uma massa indistinta de verde e castanho, até tudo se tornar uma enorme mancha cinza junto ao mar azul e depois desaparecer.
O bote deslizava sobre as águas e, para além do azul do mar e do céu, Ayandal via apenas sete manchas negras que ele sabia serem os botes dos seus companheiros. Olhando em frente viu algo. Primeiro, só um pequeníssimo ponto negro no meio do azul do mar. Depois, enquanto o seu bote avançava, o ponto crescia para uma mancha, e de uma mancha tomava a forma de um barco. Ayandal via agora que era um grande barco mercante, as velas com listas azuis e brancas. Ayandal recolheu a vela do seu bote e remou, aproximando-se do barco.
Ayandal chegou junto ao barco, de onde lançaram uma corda e uma escada. A corda usou-a para amarrar o seu bote, a escada para subir ao barco. Os marinheiros cumprimentaram-no alegremente por ter sido o primeiro a chegar e um deles deu-lhe um colar com uma pequena placa em madeira. Nela viu uma inscrição com a insígnia de capitão. Sorrindo, colocou o colar ao pescoço, despediu-se rapidamente dos marinheiros e voltou ao seu bote. Enquanto o desamarrava viu as manchas no meio do mar tornarem-se os botes de dois dos seus companheiros que se aproximavam do barco. Ayandal remou até ganhar distância do grande barco mercante, recolheu os remos e voltou a içar a vela.
Regressava agora à aldeia e seria o primeiro na Prova. Olhando em frente, via já uma forma cinza entre o mar e o céu, e olhando para trás, apenas um pontinho negro.
Foi então que Ayandal viu um peixe, um enorme peixe vermelho nadando perto do seu bote. E pensou no que diriam na aldeia se, para além da placa de madeira, trouxesse também aquele enorme peixe vermelho. Imaginou as caras dos anciãos, dos seus pais e irmãos, imaginou a cara de todos na aldeia, os comentários que fariam sobre ele, o valoroso Ayandal, o primeiro a chegar ao barco, o primeiro a retornar à aldeia e ainda com tempo para pescar. Tudo isto pensou Ayandal no tempo que levou ao peixe passar por debaixo do bote.
Ayandal, vendo o peixe distanciar-se, acordou dos seus sonhos, reorientou a vela e fixou o mastro amarrando-o com uma corda. Pegou no arpão, amarrou-lhe a corda grande e esperou até estar suficientemente perto daquele grande, vermelho peixe. Então, fixando bem os seus pés no fundo do bote e agarrando com firmeza o arpão, fez pontaria. Arremessou o arpão, atingindo o peixe a meio do dorso.
E o céu tornou-se cinzento com nuvens e as vagas tornaram-se maiores e o vento soprou com mais força. Ayandal largou a corda do arpão e agarrou a do mastro segurando-a o melhor que podia. Mas a força de Ayandal não se comparava à força do mar, e ele viu a corda partir-se e o mastro rodar de encontro a ele e a escuridão...

Quanto tempo durou a tempestade, Ayandal não soube. Quando acordou viu que o céu mais uma vez era azul, o mar calmo e nem uma brisa soprava. Levantou-se e viu também que o mastro e a vela tinham sido levados pela tempestade, mas que lhe sobravam ainda os remos. Olhando em volta, viu, para leste e não muito longe, uma mancha castanha que se estendia por todo o horizonte. Começou a remar e, olhando por cima do ombro, vendo a mancha tornar-se mais nítida houve algo que o sobressaltou. Era terra que ele via, mas não a terra que ele conhecia. Chegou a uma praia, arrastou o bote até junto às rochas, onde o deixou. Voltou para junto da água, fez uma concha com as mãos e provou a água. Sorriu. Poderia não conhecer aquele lugar, mas a água tinha a mesma deliciosa falta de sabor que a do mar que conhecia.
Caminhou terra adentro, procurando pessoas e comida. E comida encontrou, mas não pessoas. Talvez estivesse numa zona não povoada, pensou. Voltou para a praia e, com o seu bote e alguns ramos e arbustos, fez um abrigo para essa noite. Tentava dormir e não conseguia. Saiu do abrigo e, olhando o céu, percebeu o que o preocupava. Não reconhecia uma única estrela, não reconhecia nada no céu. Tudo era completamente diferente.

...

Não tendo bote nem maneira de fazer um novo, decidiu explorar aquela terra, procurando alguém que o pudesse ajudar. Durante anos vagueou, sem encontrar pessoas. Um dia houve em que encontrou uma aldeia. E os homens que encontrou nessa aldeia nada sabiam da sua língua nem, como veio a descobrir, da sua terra ou de como fazer barcos. E Ayandal ensinou-lhes o que sabia sobre barcos e sobre o mar, e com eles começou a conhecer aquela nova terra.

Um dia Ayandal voltou a ver o mar. E lembrou-se da sua aldeia. Ajoelhou-se, fez uma concha com as mãos e provou a água. Havia algo estranho naquela água, um sabor que lhe lembrava alguma coisa que há muito esquecera. Mas Ayandal não se conseguia lembrar. Levantou-se, olhou o mar e voltou para dentro de terra.
Muitos anos se passaram e muitas vezes Ayandal voltou a ver o mar, e muitas vezes o atravessou, em barcos iguais aos que tinha conhecido na sua aldeia e no seu mundo. E muitos mais anos se passaram, e os barcos em que atravessava o mar já não eram de madeira, eram de metal, e os barcos em que atravessava o mar já não eram de metal, eram de coisas de que ele não sabia o nome.

...

Uma noite Ayandal chegou a uma praia. Olhou em frente, para a escuridão do mar, e para cima, para as estrelas que nunca deixariam de ser estranhas para ele.
Então Ayandal lembrou-se. Lembrou-se de ser pequeno e de chorar e da água dos seus olhos ter aquele gosto salgado. E lembrou-se de todos aqueles que tinha deixado e da tristeza que sentiriam pelo seu desaparecimento, de quantas lágrimas teriam sido precisas para tornar o mar salgado. E de que nenhuma dessas lágrimas era dele.

Ernesto Rodrigues Sampaio

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