31 de outubro de 2004


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Carlos Drummond de Andrade


http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/index2.htm
http://www.releituras.com/drummond_bio.asp

30 de outubro de 2004


Paul Valéry (1871-1945)



Chaque atome de silence
Est la chance d'un fruit mûr!

Paul Valéry, Poésies


28 de outubro de 2004


Natércia Freire (n.1920)

NÃO

Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.

Natércia Freire,
Antologia Poética


24 de outubro de 2004


Emanuel Félix (1936-2004)



Poema-Pedra para Henry Moore

Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem

Ame o homem a pedra
e pronto

Emanuel Félix

23 de outubro de 2004


Habituei-me a que não falasses comigo
isto é
que falasses com quem me vês
de modo que
inevitavelmente
também deixei de te responder
e vou vogando pelo teu dialecto fácil
pelas palavras
cálidas
polidas
ténues
irónicas
simpáticas
monótonas
leves
divertidas
convencionais
que me estendes
palavras meio-mortas
que te devolvo numa ilusão de conversa
sem que te atrevas
naturalmente
a queimar os dedos nas sílabas de lava do que sentes
e num degelo lento
chegar até ti.

19 de outubro de 2004


Vinicius de Moraes (1913-1980)


Soneto da Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes

17 de outubro de 2004


António Ramos Rosa (n. 1924)


Quem escreve

Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.

António ramos Rosa, Acordes


http://www.geocities.com/Paris/Concorde/1070/antonioramosrosa.html
http://www.instituto-camoes.pt/arquivos/literatura/arqvarrosa.htm

16 de outubro de 2004


Oscar Wilde (1854-1900)

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que consegue traduzir, de outro modo ou em novo material, a sua impressão das coisas belas.
A mais elevada, como a mais medíocre, forma de crítica é uma expressão autobiográfica.
Os que encontram significados disformes em coisas belas, são corruptos sem agradarem, o que é um defeito.
Os que encontram belos significados em coisas belas são os cultos. Para eles há esperança.
São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo.
A antipatia do séc. XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara ao espelho.
A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem é assunto para o artista, mas a moralidade da arte consiste na perfeita utilizaçãode um meio imperfeito.Um artista não quer provar coisa alguma. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.
Um artista não tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.
O artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
Para o artista, o pensamento e a linguagem são instrumentos de uma arte.
Para o artista, o vício e a virtude são matéria de uma arte.
Do ponto de vista formal, o modelo de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista sentimental, o trabalho do actor é o modelo.
Toda arte é simultaneamente, superfície e símbolo.
Os que penetram para lá da superfície, fazem-no a suas próprias expensas.
Os que lêem o símbolo, fazem-no também a suas próprias expensas.
O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.
A diversidade de opinião sobre uma obra de arte revela que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está em consonância consigo próprio.
Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil, desde que não a admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é ser objecto de intensa admiração.

14 de outubro de 2004


e. e. cummings (1894-1962)


um riso sem um
rosto(um olhar
sem um eu) cuida

do(não to
que)ou
desaparec
erá sem ru

ído(na doce
terra)&
ninguém
(inclusive nós

mesmos)
relem
brará
(por uma fra

ção de
um mo
mento)onde
o que como

quando
por que qual
quem
(ou qualquer coisa)

e.e. cummings

10 de outubro de 2004


Harold Pinter (n. 1930)


The Ventriloquists

I send my voice into your mouth
You return the compliment

I am the Count of Cannizzaro
You are Her Royal Highness the Princess Augusta

I am the thaumaturgic chain
You hold the opera glass and cards

You become extemporaneous song
I am your tutor

You are my invisible seed
I am Timour the Tartar

You are my curious trick
I your enchanted caddy

I am your confounding doll
You my confounded dummy.

Harold Pinter


http://www.brainyencyclopedia.com/encyclopedia/h/ha/harold_pinter.html
http://www.haroldpinter.org/home/index.shtml
http://www.kirjasto.sci.fi/hpinter.htm
http://www.contemporarywriters.com/authors/?p=auth01G24K343812605467

9 de outubro de 2004


John Lennon (1940-1980)

Nobody Told Me

Everybody's talking and no one says a word
Everybody's making love and no one really cares
There's Nazis in the bathroom just below the stairs

Always something happening and nothing going on
There's always something cooking and nothing in the pot
They're starving back in China so finish what you got

Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Strange days indeed -- strange days indeed

Everybody's runnin' and no one makes a move
Everyone's a winner and nothing left to lose
There's a little yellow idol to the north of Katmandu

Everybody's flying and no one leaves the ground
Everybody's crying and no one makes a sound
There's a place for us in the movies you just gotta lay around

Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Strange days indeed -- most peculiar, mama

Everybody's smoking and no one's getting high
Everybody's flying and never touch the sky
There's a UFO over New York and I ain't too surprised

Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Nobody told me there'd be days like these
Strange days indeed -- most peculiar, mama

John Lennon

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5 de outubro de 2004

UNIÃO DE FACTO
A verdade é que vivemos felizes, totalmente felizes, garanto-te. As nossas palavras desencontram-se algumas vezes, mas comunicamos, ao contrário de muitas pessoas. E estou convencida de que nos amamos. Muito, como costumas sublinhar. Usas outras palavras, vestes outras ideias. Sorris menos. Já não tomas café no velho Central. Ouves jazz, que detestavas. Enfim, sinto que te moldaste com esmero e que tens orgulho na pessoa que criaste. E eu própria procuro ser um pouco de ti, sou um pouco de ti, como sabes, como me repetes. Não percebo por que, de repente, este desejo de asas, esta vontade súbita de não me/te sentir, de não me/te ser. De não querer caber no barro dos teus passos. De me seguir. É absurdo, bem sei. E logo agora, que somos tão próximos, com tanto em comum, com uma vida comum, é que me deu para... Já reparaste como somos parecidos? As mesmas expressões, os mesmos tiques, os mesmos sonhos... E o respeito que nos une, ao contrário de muitos. A harmonia, a comunhão de interesses... Uma união, de facto. É quase ridículo, portanto, que não me apeteça viver-te, quando me fartei de jurar que eras a minha vida. E foste. E és. É quase ridículo que me apeteça sair de ti, de um abrigo morno onde sou feliz. Esta ânsia de dor, de facto, não se explica. Felizmente que és, como todos dizem, extremamente compreensivo, e medirás logo, com um simples olhar, com um sorriso complacente, toda esta angústia, a esquadria completa da minha alma. E as asas ganharão, lentamente, a forma de braços. E apontarás um norte tão óbvio, em que não reparara. Porque já me conheces, sabes que tenho fases. Amanhã, já me deixei de voos - e fico em terra, perfeitamente convencida de que me sou contigo.
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3 de outubro de 2004


Thomas Wolfe (1900-1938)

"A destiny that leads the English to the Dutch is strange enough; but one that leads from Epsom into Pennsylvania, and thence into the hills that shut in Altamont over the proud coral cry of the cock, and the soft stone smile of an angel, is touched by that dark miracle of chance which makes new magic in a dusty world.
Each of us is all the sums he has not counted: subtract us into nakedness and night again, and you shall see begin in Crete four thousand years ago the love that ended yesterday in Texas.
The seed of our destruction will blossom in the desert, the alexin of our cure grows by a mountain rock, and our lives are haunted by a Georgia slattern, because a London cutpurse went unhung. Each moment is the fruit of forty thousand years. The minute-winning days, like flies, buzz home to death, and every moment is a window on all time."

Thomas Wolfe, Look Homeward, Angel

2 de outubro de 2004


Graham Greene (19o4-1991)

17 de Junho de 1944
(...)
Se eu voltasse para trás, onde estaríamos? Onde estávamos há um ano. Furiosos um com o outro por tementes do fim, preocupados com o que fazer da vida quando nada mais nos restasse. Não preciso preocupar-me – nada há já que temer. Isto é o fim. Mas, meu Deus, que farei deste desejo de amar?
Porque escrevo “meu Deus”? – se para mim ele não existe. Se existe, foi ele que me incutiu a ideia da promessa e detesto-o porque o fez. (...)
Não prestámos atenção às sereias. Não tinham importância. Não temíamos morrer assim. Mas o ataque nunca mais acabava.(...) Maurice desceu a escada para ver se na cave estava alguém – tinha medo por mim, como eu tinha por ele. Eu sabia que ia acontecer alguma coisa.
Não havia dois minutos que ele saíra, rebentou uma bomba na rua. (...)Fui pela escada abaixo: estava cheia de destroços e corrimões partidos, e o vestíbulo era só confusão terrível. Primeiro não vi Maurice, e só depois vi o braço que saía de debaixo da porta. Toquei-lhe na mão: seria capaz de jurar que era uma mão morta. Quando duas pessoas se amaram não podem disfarçar a falta de ternura num beijo; como poderia eu ao tocar-lhe na mão, não ter reconhecido a vida, se alguma houvesse ainda?(...) Claro que agora sei que tudo foi nervosismo. Fui enganada. Ele não estava morto. É-se responsável por uma promessa histérica? A que promessa se falta? (...)
Ajoelhei no chão: sentia-me desesperada por ajoelhar, nem mesmo em criança o fizera – porque meus pais não acreditavam em orações, como eu não acredito. Não sabia o que havia de dizer. Maurice estava morto. Extinguira-se. (...) Meu Deus, dizia eu- e meu, meu porquê -, faz com que eu acredite. Não posso acreditar, não sei. Faz com que eu acredite. E dizia: sou uma prostituta, uma impostora, desprezo-me. Não tenho força de vontade. Faz-me acreditar. Apertei muitos os olhos, fechei as mãos com muita força, até não sentir senão as unhas magoando-me, e disse que queria acreditar. Dá-lhe vida, e acreditarei. Dá-lhe uma última oportunidade. Deixa-o ser feliz. Faz isto, e eu acredito. Mas não bastava. Acreditar não dói. E por isso acrescentei: eu amo-o, e dou-Te o que quiseres em troca da sua vida. E muito baixinho disse: deixá-lo-ei para sempre, se o deixares viver, e enterrava mais e mais as unhas até sentir a pele romper-se. E continuei: as pessoas podem amar-se sem se ver, amam-Te sem Te ver a vida inteira - e ele apareceu à porta e estava vivo, e eu pensei: a agonia de viver sem ele começa, e desejei-o outra vez definitivamente morto, debaixo da porta.

Graham Greene, O Fim da Aventura

1 de outubro de 2004

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquesta? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

Camilo Pessanha

Porque hoje é o Dia Mundial da Música

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