27 de fevereiro de 2010

Foto de Irene Suchocki

Às vezes tenho medo, muito medo.
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na
possibilidade de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.

Todas as doenças pertencem a toda a gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e está a envelhecer.
Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de
lhes querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter ideias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.

Gonçalo M. Tavares, O homem ou é tonto ou é mulher

9 comentários:

jv disse...

Não será, por não sermos?

Graça disse...

Não percebi o comentário...

SL disse...

A realidade crua às vezes não ajuda à logica da vida.
Jinho

Graça disse...

Bem, na verdade, há poucas coisas que ajudam.

Obrigada pelo comentário.

Beijinho.

jv disse...

O que pretendo dizer, é que pensar, é na verdade não sermos, é sabermos que a perda total da consciência nos devolve à nossa condição primordial de não ser e o que nos resta entretanto é o sentir.

Graça disse...

Isso é muito bonito e muito pessoano,jv,mas...

jv disse...

«Cara Graça, ao ler o teu comentário, tentei perceber o que havia de pessoano no que disse e realmente é pertinente a tua observação, mas embora o pareça, nada daquilo que disse se relaciona com Caeiro, mas mais com Campos,«Aqui estás mais muito mais morto, do que julgas, embora possas estar muito mais vivo...» estou citando de cor, mas é neste sentido que sugiro o não ser.
Somos memória e consciência, vamos continuar a viver na memória dos outros,por mais algum tempo, mas quando perdermos a nossa consciência é como se nunca tivessemos existido ou mais precisamente nunca chegamos realmente a existir,porque só se pode existir em consciência, é a isto que chamo o não ser.
«Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
foi esta frase que me sugeriu o comentário, sabendo que o autor cultiva nos seus escritos uma apetência pela Filosofia e neste caso associei-o à Teoria da Existência.
Foi uma das várias leituras possíveis do poema, de que este belo texto nos proporciona.
Gostaria de deixar os meus agradecimentos pelos belos momentos que nos proporcionas aqui no teu espaço.
José Valério

Graça disse...

O tema merecia uma reflexão, de facto, JV, mas, não menos pessoanamente, vou adiar essa reflexão porque, se calhar, mais vale apenas deixarmo-nos "ir e viver pela Terra/E levar ao colo pelas Estações contentes/E deixar que o vento cante para/adormecermos/E não termos sonhos no nosso sono."

nunomaismil disse...

por acaso estou de acordo com o JV (em parte)
acho que vivemos por ter consciencia mas tambem a temos porque vivemos
é ao interagir com o mundo que tomamos consciencia de nos proprios e começamos a ser homens
discordo e do facto de JV por a hipotese de se perder a consciencia
penso que isso faz tanto sentido como dizer que depois de perder o autocarro voltamos para casa sem sequer tentar apanhar o autocarro seguinte