5 de outubro de 2004

UNIÃO DE FACTO
A verdade é que vivemos felizes, totalmente felizes, garanto-te. As nossas palavras desencontram-se algumas vezes, mas comunicamos, ao contrário de muitas pessoas. E estou convencida de que nos amamos. Muito, como costumas sublinhar. Usas outras palavras, vestes outras ideias. Sorris menos. Já não tomas café no velho Central. Ouves jazz, que detestavas. Enfim, sinto que te moldaste com esmero e que tens orgulho na pessoa que criaste. E eu própria procuro ser um pouco de ti, sou um pouco de ti, como sabes, como me repetes. Não percebo por que, de repente, este desejo de asas, esta vontade súbita de não me/te sentir, de não me/te ser. De não querer caber no barro dos teus passos. De me seguir. É absurdo, bem sei. E logo agora, que somos tão próximos, com tanto em comum, com uma vida comum, é que me deu para... Já reparaste como somos parecidos? As mesmas expressões, os mesmos tiques, os mesmos sonhos... E o respeito que nos une, ao contrário de muitos. A harmonia, a comunhão de interesses... Uma união, de facto. É quase ridículo, portanto, que não me apeteça viver-te, quando me fartei de jurar que eras a minha vida. E foste. E és. É quase ridículo que me apeteça sair de ti, de um abrigo morno onde sou feliz. Esta ânsia de dor, de facto, não se explica. Felizmente que és, como todos dizem, extremamente compreensivo, e medirás logo, com um simples olhar, com um sorriso complacente, toda esta angústia, a esquadria completa da minha alma. E as asas ganharão, lentamente, a forma de braços. E apontarás um norte tão óbvio, em que não reparara. Porque já me conheces, sabes que tenho fases. Amanhã, já me deixei de voos - e fico em terra, perfeitamente convencida de que me sou contigo.
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3 comentários:

SL disse...

Gostava de saber destes teus voos...e quem sabe não estará mesmo na altura de voares. Se precisares de ajuda para arranjar um norte, já sabes, liga. Muitas vezes é necessário esquecer.
O texto é de tirar perder o ar!

Mito disse...

Invejável, a tua força de dizer, de sentir e de abrir o peito ao vento. Palavras no éter que o fazem sentir pesado como chumbo, tal a leveza do teu arroubo. Pode o desprendimento conviver com a obsessão? Pode alguém suportar tanta sinceridade? Pode o destinatário suportar o sublime desta união?
Não sei como classificar este texto; se um murro no estômago, se um abraço de pestanas do tamanho da saudade.
Um desmoronar tão ribombante na retórica dos sentimentos (re)construídos só pode ser ensurdecedor e desconcertante e não pode, de facto, ser servido todos os dias. É lucidez a mais.

Graça disse...

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