Doctor Unheimlich has diagnosed me with Graça's Disorder | |
Cause: | unknown |
Symptoms: | turning to stone, aphasia, automatic writing, seizures |
Cure: | click heels together three times |
Às vezes, encontro-me nas palavras dos outros. Mais raramente, nas minhas. Por pura coincidência. Em pura coincidência.
30 de dezembro de 2004
Está explicado
29 de dezembro de 2004
Maria Azenha (1945)
O prazo de validade da escola
o prazo de validade da Escola
está fora do Um
entrego-me nas horas a polir as unhas ao Todo
o buraco da fechadura do mundo
está sujo
as empregadas
fecham as portas e marcam faltas
no supermercado onde vivo
escrevo no quadro está calada vânia
sem a metafísica do sujeito além do mais
o teorema de pitágoras foi de certeza roubado
da internet para testar a professora do armazém
deviam todos vestir a mesma bata para não se distinguir
a bélgica da alemanha da espanha e por aí fora
e também o país às terças feiras
quando toda a gente vai fazer compras
ao armazém de george orwell
as refeições continuam a ser repressivas
ninguém sabe o que come "está bem"
mas ficámos uns com os outros por causa da noção do todo
Maria Azenha
.
26 de dezembro de 2004
Alberto Pimenta (1937)
este dia há-de passar este dia há-de passar e a noite
também a noite também há-de passar e depois há-de pas
sar o dia de amanhã o dia de amanhã e a noite de aman
hã e depois passará o dia de depois de amanhã passará
o dia e a noite de depois de amanhã e seguidamente pa
ssará também o dia seguinte e passará a noite respec
tiva e o outro dia seguinte e a outra noite e o outro
dia e a noite e o dia a seguir e todos e todas hão-de
passar todas e todos todos os dias e todas as noites
com as lembranças uns dos outros com as tristes e com
as alegres lembranças uns dos outros umas das outras
uns dias dos outros dias umas noites das outras noites
com as alegres e as tristes lembranças das lembranças
todas e todos hão-de passar assim também o dia que há
de vir a seguir àqueles dias e a noite que virá segui
damente oh sim assim será assim será e aqui não acaba
não acaba aqui a minha visão mas não me apetece mais
pois embora assim seja eu sei que tudo será diferente
Alberto Pimenta, Obra quase Incompleta
também a noite também há-de passar e depois há-de pas
sar o dia de amanhã o dia de amanhã e a noite de aman
hã e depois passará o dia de depois de amanhã passará
o dia e a noite de depois de amanhã e seguidamente pa
ssará também o dia seguinte e passará a noite respec
tiva e o outro dia seguinte e a outra noite e o outro
dia e a noite e o dia a seguir e todos e todas hão-de
passar todas e todos todos os dias e todas as noites
com as lembranças uns dos outros com as tristes e com
as alegres lembranças uns dos outros umas das outras
uns dias dos outros dias umas noites das outras noites
com as alegres e as tristes lembranças das lembranças
todas e todos hão-de passar assim também o dia que há
de vir a seguir àqueles dias e a noite que virá segui
damente oh sim assim será assim será e aqui não acaba
não acaba aqui a minha visão mas não me apetece mais
pois embora assim seja eu sei que tudo será diferente
Alberto Pimenta, Obra quase Incompleta
19 de dezembro de 2004
Alexandre O'Neill (1924-1986)
Soneto Inglês
Como o silêncio do punhal num peito,
O silêncio do sangue a converter
Em fio breve o coração desfeito
Que nas pedras acaba de morrer,
Vive em mim o teu nome, tão perfeito
Que mais ninguém o pode conhecer!
É a morte que vivo e não aceito;
É a vida que espero não perder.
Viver a vida e não viver a morte;
Procurar noutros olhos a medida,
Vencer o tempo, dominar a sorte,
Atraiçoar a morte com a vida!
Depois morrer de coração aberto
E no sangue o teu nome já liberto...
Alexandre O'Neill, Poesias Completas
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18 de dezembro de 2004
É nos actos, nos actos, frente a frente,
que os homens se conhecem
e raro nas verdades que mastigam
e divulgam no fumo das palavras.
Todavia, as palavras são os actos
mais puros dos poetas: carne viva,
sal pessoal de lágrimas ardidas
num colectivo mar que se evapora.
São também o tempero cristalino
da nascente futura, entre montanhas
Pardas.
Não me perguntes, pois, que fiz ou faço
ou quanto irei fazer (pouco, decerto,
mal cabendo num verso tão volátil!).
Mas olha-me nos olhos, firmemente,
e diz-me se te vês.
Que todo o verso é hálito comum
correndo em veias cósmicas. Poeira.
Parabólico voo. Estreita nave.
Celeste agricultura.
- De palavras.
António Luís Moita (1928)
.
que os homens se conhecem
e raro nas verdades que mastigam
e divulgam no fumo das palavras.
Todavia, as palavras são os actos
mais puros dos poetas: carne viva,
sal pessoal de lágrimas ardidas
num colectivo mar que se evapora.
São também o tempero cristalino
da nascente futura, entre montanhas
Pardas.
Não me perguntes, pois, que fiz ou faço
ou quanto irei fazer (pouco, decerto,
mal cabendo num verso tão volátil!).
Mas olha-me nos olhos, firmemente,
e diz-me se te vês.
Que todo o verso é hálito comum
correndo em veias cósmicas. Poeira.
Parabólico voo. Estreita nave.
Celeste agricultura.
- De palavras.
António Luís Moita (1928)
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9 de dezembro de 2004
José Rodrigues Miguéis (1901-1980)
“Venha até lá casa no Dia de Natal”, tinha-me dito aquele compatriota. ”Passa-se um bom rato. Temos polvo guisado à portuguesa, e um arroz de amêijoas que o prepara Don Rufas. Vai ver que não se arrepende. Aquilo o que tem é ser casa de pobres...”
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por estas bandas. Como vivem os da Nova Inglaterra já eu sei. Mas por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho e buxo, por vezes uma vela acesa, em mensagem de paz e alegria a quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada 1uz do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risadas, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolariza-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a parte onde fui deixando o coração em pedaços. Quero que ele esteja aqui, todo presente, inteiro e caloroso, e ele foge-me, dispersa-se... Foge para os que amo do outro lado do oceano - minha mãe, amigos meus, amores perdidos - ou para lá do Hudson, no lar dum amigo fiel, onde eu gostaria de ficar hoje a gozar em silêncio a paz do dia samto, cachimbando diante dum bom lume.
Nunca eu sofro tanto, como nestes dias, do absurdo, impossível desejo de ver reunidos comigo todos os seres, tantos deles inconciliáveis, que tenho amado e continuo a amar através de tudo, os vivos e os mortos. O meu coração, insaciável de receber e dar carinhos, alegria e fervor, dilata-se e palpita até me doer o peito . Este amor difuso, fragmentário, polivalente, dilacera-me: tenho de fazer um esforço, sacudir-me, condensar-me, para não ficar de todo triste, e estar aqui presente, em vez de me esvair em fumo de solidão, de renúncia total. Não podendo ter tudo e todos, ser de tudo e todos, prefiro não ter nada, ninguém,e ficar só - para me dar melhor...
José Rodrigues Miguéis, “Natal Branco” (excerto)
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por estas bandas. Como vivem os da Nova Inglaterra já eu sei. Mas por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho e buxo, por vezes uma vela acesa, em mensagem de paz e alegria a quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada 1uz do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risadas, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolariza-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a parte onde fui deixando o coração em pedaços. Quero que ele esteja aqui, todo presente, inteiro e caloroso, e ele foge-me, dispersa-se... Foge para os que amo do outro lado do oceano - minha mãe, amigos meus, amores perdidos - ou para lá do Hudson, no lar dum amigo fiel, onde eu gostaria de ficar hoje a gozar em silêncio a paz do dia samto, cachimbando diante dum bom lume.
Nunca eu sofro tanto, como nestes dias, do absurdo, impossível desejo de ver reunidos comigo todos os seres, tantos deles inconciliáveis, que tenho amado e continuo a amar através de tudo, os vivos e os mortos. O meu coração, insaciável de receber e dar carinhos, alegria e fervor, dilata-se e palpita até me doer o peito . Este amor difuso, fragmentário, polivalente, dilacera-me: tenho de fazer um esforço, sacudir-me, condensar-me, para não ficar de todo triste, e estar aqui presente, em vez de me esvair em fumo de solidão, de renúncia total. Não podendo ter tudo e todos, ser de tudo e todos, prefiro não ter nada, ninguém,e ficar só - para me dar melhor...
José Rodrigues Miguéis, “Natal Branco” (excerto)
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Etiquetas:
~ n. 09 de Dezembro,
José Rodrigues Miguéis
8 de dezembro de 2004
Florbela Espanca (1894-1930)
INCONSTÂNCIA
Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificavaMeu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbravaIgual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecerAs brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...
Florbela Espanca
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7 de dezembro de 2004
José Carlos Ary dos Santos (1937-1984)
Os Sapatos
2
Lá vem o teddy-poeta
que não tem nada a dizer
filho-família do mar
que lhe morreu ao nascer
parasita das palavras
que tem no banco a render
e se gastam, como a voz
dum povo que vai morrer.
Lá vem o tédio-poeta
que não tem nada a perder.
Vem numa hora de bruma
depois do café com leite
depois do banho de espuma
que lava o sal e o cheiro
a fingir que se levanta
dum leito de nevoeiro.
Chega de Alcácer Quibir
com escorbuto na alma
e morre, mas devagar,
neste mar-asma de calma.
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José Carlos Ary dos Santos
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Etiquetas:
~ n. 07 de Dezembro,
José Carlos Ary dos Santos
4 de dezembro de 2004
Lembro-me perfeitamente desse futuro.
Julgo que ele ainda lá está. Como tu. No avesso da vida.
E lembro-me perfeitamente de existir. Como se fosse hoje.
Nunca percebi por que te abandonaste. Por que te negaste tantas vezes.
Julguei que era eu o teu sangue. O teu nome.
Nunca te perdoarei por me teres deixado morrer.
Ou por me obrigares a viver.
Diariamente.
Continuamente exposta à tua claridade.
Julgo que ele ainda lá está. Como tu. No avesso da vida.
E lembro-me perfeitamente de existir. Como se fosse hoje.
Nunca percebi por que te abandonaste. Por que te negaste tantas vezes.
Julguei que era eu o teu sangue. O teu nome.
Nunca te perdoarei por me teres deixado morrer.
Ou por me obrigares a viver.
Diariamente.
Continuamente exposta à tua claridade.
2 de dezembro de 2004
Para quem suspeitava, a confirmação:
Disorder Rating
Paranoid: Moderate
Schizoid: Moderate
Schizotypal: Low
Antisocial: Low
Borderline: Moderate
Histrionic: Low
Narcissistic: Low
Avoidant: Moderate
Dependent: Moderate
Obsessive-Compulsive: Moderate
URL of the test: http://www.4degreez.com/misc/personality_disorder_test.mvURL for more info: http://www.4degreez.com/misc/disorder_information2.html
Paranoid: Moderate
Schizoid: Moderate
Schizotypal: Low
Antisocial: Low
Borderline: Moderate
Histrionic: Low
Narcissistic: Low
Avoidant: Moderate
Dependent: Moderate
Obsessive-Compulsive: Moderate
URL of the test: http://www.4degreez.com/misc/personality_disorder_test.mvURL for more info: http://www.4degreez.com/misc/disorder_information2.html
1 de dezembro de 2004
Pedro Tamen (1934)
Onde foste ao bater das quatro horas
E, antes, quem eras tu, se eras?
Amigo ou inimigo, posso falar-te agora
Sentado à minha frente e com os ombros
Vergados ao peso da caneta?
Falo-te sobre a cabeça baixa
E vejo para além de ti no horizonte,
Teus riscos e passadas;
Mas não sei onde foste nem se eras.
Olho-te ao fundo, sob o sol e a chuva,
Fazendo gestos largos ou só um leve aceno;
Dizes palavras antigas,
De antes das quatro horas,
E nada sei de ti que tu me digas
Dessa cabeça surda.
Não te pergunto pela verdade,
Que pensas de amanhã ou se já leste Goethe;
Sequer se amaste ou amas
Misteriosamente
Uma mulher, um peixe, uma papoila.
Não quero essa mudez de condolências
A mim, a ti, ou só à terra
Que tu e eu pisamos – e comemos.
Pergunto simplesmente se tu eras,
Quem eras, e onde foste
Depois que se fizeram quatro horas.
Será que não tens olhos? Não tos vejo.
De longe em longe
Agitas a cabeça, mas talvez seja engano.
Palavra que não te entendo.
Amigo, a que vieste?
Pedro Tamen
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