9 de dezembro de 2004


José Rodrigues Miguéis (1901-1980)

“Venha até lá casa no Dia de Natal”, tinha-me dito aquele compatriota. ”Passa-se um bom rato. Temos polvo guisado à portuguesa, e um arroz de amêijoas que o prepara Don Rufas. Vai ver que não se arrepende. Aquilo o que tem é ser casa de pobres...”
Não faltei ao convite, e não me arrependi.
Nunca perco o ensejo de ver como vive a nossa gente cá por estas bandas. Como vivem os da Nova Inglaterra já eu sei. Mas por aqui é diferente.
A casa é ali no East Side, na Rua 29, entre os italianos, num terceiro andar. Em quase todas as janelas há coroas de azevinho e buxo, por vezes uma vela acesa, em mensagem de paz e alegria a quem passa na rua. Ao entrar, deixamos lá fora, na azulada 1uz do entardecer precoce, um resto de neve encarvoada, e a solidão que invade as ruas de todas as grandes cidades nestes dias de festa e de frio.
Subimos. De todos os apartamentos vêm gritos, música, risadas, aromas culinários. Uma subtil nostalgia de exilado despolariza-me: desejo, nestes dias de memórias festivas, estar por toda a parte onde fui deixando o coração em pedaços. Quero que ele esteja aqui, todo presente, inteiro e caloroso, e ele foge-me, dispersa-se... Foge para os que amo do outro lado do oceano - minha mãe, amigos meus, amores perdidos - ou para lá do Hudson, no lar dum amigo fiel, onde eu gostaria de ficar hoje a gozar em silêncio a paz do dia samto, cachimbando diante dum bom lume.
Nunca eu sofro tanto, como nestes dias, do absurdo, impossível desejo de ver reunidos comigo todos os seres, tantos deles inconciliáveis, que tenho amado e continuo a amar através de tudo, os vivos e os mortos. O meu coração, insaciável de receber e dar carinhos, alegria e fervor, dilata-se e palpita até me doer o peito . Este amor difuso, fragmentário, polivalente, dilacera-me: tenho de fazer um esforço, sacudir-me, condensar-me, para não ficar de todo triste, e estar aqui presente, em vez de me esvair em fumo de solidão, de renúncia total. Não podendo ter tudo e todos, ser de tudo e todos, prefiro não ter nada, ninguém,e ficar só - para me dar melhor...

José Rodrigues Miguéis, “Natal Branco” (excerto)
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