António Lobo Antunes (1942)
E PRONTO
Agora não. Talvez daqui a uma hora, amanhã, depois de amanhã, mais tarde, mas agora não. Agora aguenta-te, finge que és forte, sorri ou, pelo menos, puxa os cantos da boca para cima: se mantiveres os olhos secos vão pensar que é um sorriso. Então basta pedir
- Com licença
e saíres. Quantos metros até à porta? Seis? Sete? Continua com os cantos da boca puxados para cima, caminha de lado se não tens espaço, vai pedindo
- Com licença
toca ao de leve costas, ombros
- Com licença
contorna esse homem gordo que te não ouviu
os homens gordos nunca ouvem
quatro metros, três metros, mais costas, mais ombros, a música mais intensa porque um amplificador mesmo em cima de ti, já nem vês o bar, já nem vês a pista, vês cabeças, caras, nenhum braço que te acene, te chame, cabeças que não tornarás a ver, caras que nunca viste, o homem gordo ainda, a ficar lá para trás, distante, duas costas, dois ombros e a porta, uma costas, uns ombros e a porta, nenhumas costas, nenhum ombros, a porta, ou seja a primeira porta, o bengaleiro a seguir, entrega a senha à empregada, recebe o casaco, agradece o casaco aumentando o sorriso
não soltes os cantos da boca
devias ter entregue uma moeda com a senha
entregaste?
a segunda porta, a rua, as pessoas que esperam para entrar e te olham com inveja, o segurança de braços afastados a impedir uma rapariga
- Um momento
pisca um olho ao segurança
pisca-se sempre um olho amigo ao segurança
cumprimenta-o
- Até amanhã
ou assim, tanto faz, não se entende com a música, aceita a palmadinha do segurança que afinal te conhece
- Tão cedo?
e as pessoas que esperam para entrar não somente com inveja, com respeito, hesitando quem serás, quem não serás, uma delas
a esperta
para o segurança, a apontar-te
- Sou prima desta tipa
o segurança a aumentar no interior da camisa
- Disse um momento não disse?
já quase ninguém, já ninguém, tu sozinha na esquina, procura as chaves do carro na mala entre os lenços de papel e os óculos escuros, deixaste o automóvel ali em baixo, na praceta, não esta travessa, a seguinte, a seguinte também não, havia um chafariz por aqui, depois da padaria fechada talvez
é uma padaria
que estes bairros antigos parecem-se todos, acanhados, estreitos, os caixotes do lixo a atravancarem o passeio para além do que os moradores deitam fora, uma cadeira, um fogão, um armário amolgado, aí está o chafariz no fim de contas não à esquerda, à direita, com uma luz municipal em cima, a coroa da monarquia, uma data na pedra
1845
nenhuma bica a deitar água, a praceta e o seu quadrado de relva, o banco de madeira a que faltam duas ripas, um jipe e passando o jipe o teu carro, quando chegaste entre um jipe e uma furgoneta e agora entre um jipe e outro jipe, os dois tão unidos ao automóvel que vais gastar um século a torcer o volante, a avançar, a recuar, a tirá-lo de modo que bates devagarinho neste, bates devagarinho naquele, talvez desta vez
não, um avanço e um recuo ainda
um drogado fraternal a auxiliar a manobra, vasculhar na carteira
lenços de papel, óculos escuros, a agenda com a página do telefone do dentista solta
em busca de uma moeda para o drogado
a moeda que devias ter dado no bengaleiro
e o drogado a olhar-te sem olhar a moeda de forma que tranca o carro depressa, o estalido das portas e o drogado a troçar-te mas com os olhos sérios, a espalmar o nariz no vidro, a diminuir, inofensivo, à medida que avanças, becos, travessas, sentidos proibidos, onde se apanha a avenida, onde raio se apanhará a avenida, novos sentidos proibidos, uma camioneta de lavar a rua a impedir-te um caminho que pensas conhecer, uma seta a obrigar-te a contornar uma estátua que não é bem uma estátua, é metade de um homem a emergir de um calhau e nisto, sem que dês conta, o rio, armazéns, contentores, uma espécie de guarita e perto da guarita os pescadores da noite jogando linhas ao Tejo, o cheiro do gasóleo, o cheiro da vazante, percebes a água por reflexos, escamas, não necessitas de sorrir nem de puxar os cantos da boca, inclina um bocadinho o banco, acomoda-te melhor, liga o rádio, experimenta um cigarro e a página do telefone do dentista a surgir da carteira juntamente com o maço
não apenas o dentista, Diná, David, Duarte
um papelinho amarelo colado por baixo do telefone a lembrar-te
quarta-feira onze
a consulta, guarda a página, se não achas o isqueiro tens o isqueiro do carro, empurra-se e daqui a nada salta com a ponta vermelha, não gostas do isqueiro do carro porque o tabaco queimado fica preso aos aneizinhos em brasa, um dos pescadores procura isco na alcofa, os morros de Almada, uma paz tão grande não é, um sossego lento não é, uma calma não é, a tristeza a dissolver-se, fecha os olhos, descansa, e vais ver que daqui a nada já não te lembras que acabámos, daqui a nada já nem te lembras de mim.
António Lobo Antunes, Visão, 23 /05/02
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