4 de janeiro de 2006


Umberto Eco (1932)




Senhora,
como posso esperar mercê de quem me destrói? E contudo a quem se não a vós posso confiar a minha pena procurando conforto, se não na vossa atenção, ao menos à minha inescutada palavra? Se amor é uma medicina que cura todas as dores com uma dor ainda maior, não poderei talvez entendê-lo como uma pena que mata por excesso qual­quer outra pena, de modo a tornar-se o fármaco de todas, menos de si própria? Dado que se alguma vez vi beleza, e a pretendi, não foi senão o sonho da vossa, por que razão deverei queixar-me se outra beleza para mim é igualmente sonho? Pior seria se aquela eu fizesse minha, e com ela me saciasse, não sofrendo mais pela imagem da vossa: que de bem escasso medicamento haveria eu gozado, e o mal se acrescentaria por remorso desta infidelidade. Melhor é confiar na vossa imagem, tanto mais agora que entrevi mais uma vez um ini­miga de quem não conheço o rosto e queria talvez nunca o conhecer. Para ignorar este espectro odiado, que me socorra o vosso amado fantasma. Que de mim faça ao menos o amor um fragmento insensível, uma mandrágora, uma fonte de pedra que deite fora toda a angústia...

Umberto Eco, A Ilha do Dia Antes

.

Sem comentários: